Hoje me senti como se fosse

Dias ocorrem quando a gente se sente um monte de lixo. Como sacos pretos deixados na rua, logo tornados rotos por cães vadios, que pecaram unicamente por crescerem além do previsto. Sendo abandonados a própria sorte. Depois que seus latidos passaram a incomodar o vizinho e suas cacas acabaram por dar mau cheio à varanda antes limpinha da mãe dos meninos. Os mesmos que pediram ao Papai Noel, em sua cartinha deixada de véspera na árvore de Natal, suplicando por um pet peludo, olhos escuros e confiáveis. Mas, como quase sempre acontece, num dia cedo, manhã radiante de primavera ainda sem chuva a tintar de cinza o céu azul até demais, quando o cãozinho crescido abanava o rabinho curto, pensando ir passear no parque, ali fazer diabruras junto ao amigo pseudo- dono, uma vez entronizado no porta mala, não no banco de trás junto aos dois filhos maiores, quilômetros na estrada sem rumo foi deixado no asfalto, solitário, perdido, sentindo-se o último dos derradeiros. E nunca mais viu nenhum dos seus antigos senhores. Até que um dia, triste sina, andando lentamente pela mesma estrada, cansado de procurar sua antiga morada, fechou os olhos enxergadores, até cometer suicídio, atropelado por um carro em alta velocidade. Que nem tempo teve de se desviar da colisão contra a sua própria pessoa amistosa e fiel. Dele só restou uma mancha vermelha e peluda atapetando o asfalto. Mortinho da silva, embora se chamasse Totó.

Dias existem quando a gente se sente feliz e realizado. No meu caso são a maior parte.

Mas, sobremodo este que vos escreve, de quando em vez sente-se acabrunhado.

Foi dessa maneira que me senti no dia de hoje. Feriado nacional, data comemorativa ao dia das crianças, e tendo como inspiradora aquela santinha escura, padroeira do Brasil.

Tantas e tantas vezes me julguei menino. Noutro dia, defronte ao meu consultório de urologista escritor estabelece-se um consultório de pediatria. Semana passada marquei consulta com o médico de crianças. Da sua secretária solícita e gentil recebi pirulitos e balas macias. Como macio era o colo de minha mãe. Pena que, na hora do atendimento, quando passei minha carteirinha de Unimed na ranhura a ela destinada, o computador sabichão recusou a passagem, deixando na tela, a minha frente, o seguinte dito: “olha aqui, vetusto ancião. Seu lugar é no médico do andar de baixo. Um geriatra competente, parente de um psiquiatra que perfeitamente vai entender seus queixumes”. Não precisa dizer da minha decepção após o fato real que apenas eu não constato. Sou em realidade um idoso sênior, com mania de ser menino, como me sinto ao lado do querido Theo, meu lindo netinho.

Mesmo assim continuo a dar asas a imaginação. Mesmo ancião, em idade provecta, um sapato velho e gasto de tantas andanças sem esperanças senão de em breve ser enterrado junto aos meus tantos livros, persisto em devanear meus idílios todos.

Ora me sinto criança. De repente um velho gagá. Melhor tio.

Hoje, já noite, perto das oito dela mesma, ao descer a rua rumo ao encontro de meu neto, na casa da minha filha, e do meu genro, avistei um velhinho trôpego, abengalado, descendo ao meu lado.

Tentei puxar conversa com ele próprio. Ele, a custa de um fone de ouvido, mal escutando meus ditos, ao saber a minha real idade, pilheriou?, ou não, dizendo assim: “quer saber, velho como eu, apesar de menos alguns anos de idade. Contente-se com a idade que tem. Nada contra ser velho. Tem inúmeras vantagens”.

Como ele estava muito lento e eu, como sempre, apressado, a ele olhei, com olhos de pura nostalgia.

Hoje, descendo a rua, no dia das crianças, fato inconteste, não mais sou como elas.

Mesmo assim senti-me como se fosse. E aí? Alguém contra?

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