Meu amigo moribundo

Há tempos tenho pensado na finitude da vida. A morte tem me espreitado com seus olhos mortiços. Pessoas existem que me recomendam não falar tanto na partida ao além.

O grande escritor, educador, cronista de mancheia, Rubem Alves, nascido como eu em Boa Esperanca, terra do pianista notável Nelson Freire, e de tantos outros idem importantes no cenário brasileiro, antes da morte escreveu citando o nome dela em muitas das suas crônicas. Não sei se por esta razão ela apareceu. Com sua carruagem puxada por corcéis da negritude da noite. Que aterrissa numa casa qualquer, num hospital onde médicos hesitam em desligar os aparelhos que mantem uma réstia de vida no último respiro de pacientes terminais. Aqueles que passam tempos incontáveis em unidades de tratamento intensivo, sem qualquer chance de voltar aos velhos tempos. Estes não voltam mais. Apesar de desejarmos tanto.

Já tive amigos importantes. Não importantes no quesito de ocuparem um lugar de destaque na comunidade. Jamais considero importantes aqueles que dizem, do alto da sua insignificância: “sabe com quem está falando”? Esses, por mais que pensam serem amigos, nada mais são do que uma poeirinha fina exalando da terra desnuda. Imperceptíveis que são.

Já tive amigos doutores. São poucos. Já tive amigos na roça. São muitos. Amo gente singela, de mãos caludas, de pouca instrução. Que se esquivam do meu cumprimento, quando tento apertar-lhes as mãos, por pensarem que sua mão é áspera ao toque, ou suja. Embora não o sejam. Como o amigo querido Tiãozinho do Aristeu. Eles todos sabem mais do que eu a época certa para o plantio. Quando a égua dá cio. Quando a vaca aceita o touro. Ou ainda conhecem, mais do que nunca, onde ficam os ovos da galinha Marieta, que depositou seu primeiro ovinho na moita de bananeira, pensando estar a salvo do bico predador do tucano safado.

Já tive, e ainda tenho, amigos entre os obreiros pedreiros. Aqueles que constroem a nossa morada. Num bairro granfino de um condomínio luxuoso. Mas, depois de a casa pronta nunca serão convidados a assentarem-se no sofá de couro negro. Como negro é o passado dos donos da mansão edificada com rendas escusas.

Tenho amigos entre as excelentes secretárias do lar. Junto a mim, prestando ótimos serviços, a inexatos mais de vinte anos, trabalha a amiga Ângela. Oriunda de Ijaci. No entando agora ela mora pertinho de mim.

Ainda tenho amigos, velhos e prestimosos amigos, entre ex-vizinhos da Rua Costa Pereira, onde cresci. Eles costumavam servir de apanhadores das bolinhas de tênis quando eu ainda praticava este esporte que considero muito mais perfeito que o futebol. Eles ainda estão por aqui. Outros, não.

Tenho amigos vivos entre os animais. Embora não entenda bem os seus mugidos ou latidos. Cães, no meu entender, são os mais fiéis que pude ver.

Ainda considero amigos, apesar de desconhecer-lhes a opinião, entre os que comigo se cruzam nas ruas. Bem cedo. Quando desço ao consultório. Mesmo aos desconhecidos desejo-lhes um ótimo dia. Se não perfeito, que seja bom enquanto durar.

Este enquanto perdurar me fez refletir sobre a finitude da vida e a inexorabilidade da morte.

Sei que mais dia, menos um, a morte aparece. Como em alguns meses, tomara anos, ela vai vir a esse meu amigo buscar.

Fomos amigos em escritas no mesmo jornal. Agora ele não escreve mais. Nem ao menos tem me respondido aos Whatsaps que tenho lhe encaminhado. Tomara por preguiça. Ele sempre foi preguiçoso e bonachão. Não me lembro de tê-lo visto empunhando o cabo da enxada. Mas como ele era perfeito na criatividade! Manifesta num portal que ele criou e agora passou adiante. Fui o prefaciador de um seu livro. Senão me engano o nome da sua obra era Navio Pirata. Uma coletânea de crônicas muito inspirada. Editada na mesma gráfica onde nasceu meu Mugido de Vaca e Cheiro de Curral.

Há tempos tenho feito ao meu amigo visitinhas curtas de médico. Não como seu médico. Seus cuidadores são outros colegas.

Quando passo por sua casa, como aconteceu no dia de hoje, preocupado com seu estado de saúde, o velho guerreiro tem lutado com pertinaz enfermidade há longos anos, notei-lhe alquebrado. Meu amigo, quase da minha idade, não mais responde as minhas mensagens ao celular. Ele não se levanta do leito. Entregou os pontos? Tomara não.

Na minha visita de hoje ofereci-lhe jabuticabas. Ele mal levou uma das frutinhas a boca e a rejeitou.

Saí de sua presença tentando oferecer-lhe ânimo. Mas ele mal retribui ao meu aperto de mão.

Não sei quanto tempo de vida resta ao meu amigo moribundo. Nem quero saber.

Prefiro guardar a sua imagem plena de saúde e bom humor. Escrevendo, sorrindo, encaminhando-me seus Whatsaps dizendo assim: “Paulo Rodarte. Eu te amo”.

Eu também te amo amigo Pedro Coimbra. Muito. Muito mesmo.

Não vou chamá-lo de amigo moribundo. Você, mesmo que morra, vai estar sempre vivo dentro de mim.

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