Pra onde?

Disse Mario Quintana: “são os passos que fazem os caminhos”.

Pensando bem ele não está errado. Caso fosse contar todos os passos dados até hoje, quantos caminhos trilhados, quantos senões foram inadvertidamente praticados, não sei quantos dedos das duas mãos seriam precisos.

O grande poeta gaúcho, entre outras frases notáveis, sofismou: “a recordação é uma cadeira de balanço balançando sozinha”. E disse mais: “e quando o trem passa por um destes ranchinhos modestos a beira da estrada pensamos que ali mora a felicidade”.

Quem sou eu para discordar dele, com minha prosa insossa, frente ao lirismo dos seus versos? Nada mais do que um ninguém. Uma mancha de água feita de pouco no asfalto quente.

Sempre me conquistou os pensamentos vagabundos quando me cruzo nas estradas com um andarilho. Admiro-lhes o descompromisso gostoso. A inexistência da pressa. A não precisão de levar documentos. A falta total de estar ali, aqui, acolá. De não ter de assinar ponto. De fazer o que lhe aprouver. De não ter de estar no trabalho, exatamente às sete da manhã, de uma segunda chuvosa como esta. De não ter quem o espere de mal humor. Já que o salário atrasou. As contas estão no vermelho. O cartão de crédito vencido exibe juros altíssimos. Da altura da montanha que daqui se avista. Para o andarilho o livro de ponto é a beira da estrada. A cama onde dorme não tem goteiras. Pois não teve tempo de remendar o telhado. Por absoluta falta de tempo. O que não é seu problema. Seu leito tem a abóboda enfeitada por miríades de estrelas. Num dia de chuva as goteiras não o perturbam. Definitivamente penso que os andarilhos, aqueles sem lenços ou documentos, descobriram a felicidade plena. Coisa tão difícil pra gente. Que tem o desprazer de votar em certas pessoas e não tem a correspondência de seus anseios.

Pra onde vou todas as manhãs tornou-se rotina para mim enfadonha. Levanto-me cedo. Imprecisamente as cinco da manhã. Acordo, como foi nesta segunda, com vontade premente de ir ao vaso sanitário. Como idoso minha bexiga cheia clama por socorro. A seguir me encaminho a ducha morna. Não fria ao exagero. Nem quente ao destempero. Passo uma escova nos dentes que me restam. Tomo minha maltho dextrina para me dar energia que me falta. Batida no liquidificador com duas bananas, mel, e leite aos montes. Sempre caminhando apressado chego ao consultório. Hoje foi preciso levar um enorme guarda-chuva, o pai dos esquecidos. Antes das oito dou vazão ao escritor exercitar a sua pena freneticamente. Para, a partir de essa hora começar a lida de médico urologista. Isso vai manhã adentro. Até antes das dez. Quando entra em cena o médico militante em saúde pública. Antes do meio dia já estou em casa. Depois de, sempre caminhando, não contar os passos para onde vou, se sei que quando vou volto ao mesmo lugar de onde vim.

A rotina me enfada. Não acontece o mesmo aos andarilhos. Graças ao bom pai do céu tenho o costume de escrever para driblar o mormaço do dia após dia. Como é maçante a rotina. A vida seria insuportável não fossem as mudanças.

Não sei quando, ou em que data aconteceu, durante uma corrida longa, de aqui a Camargos, nas cercanias de Itutinga, quando subia correndo o morro do Capivari, cruzei-me com um andarilho. Ele vinha sem pressa. Eu subia o morro agudo em quarta marcha. Na intenção de bulir com ele perguntei qual a distância que faltava a São Joao Del Rey. Foi quando dele ouvi que ele estava vindo de Juiz de Fora. Não precisou o tempo de caminhada. Senti-me não apenas humilhando como revigorado. Em pouco mais de duas horas lá estava eu no ponto final da corrida. Sentindo-me como ele, o andarilho.

Quando caminho, agora desapressado, sempre que alguém me pergunta para onde vou, respondo, com calma que antes não dispunha: “não sei. Ignoro”.

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