Baita fraude do Tião Resmungão

Era meio feriado nas cercanias da roça do nosso amigo. Dia de sexta-feira, nacionalmente conhecido por dia da cerveja com os amigos, bom que a ciumenta esposa pense que ele está numa roda de bar não num motel meio escondido, quando a televisão anunciou um baita queima no estoque que entulhava as prateleiras de alto a baixo.

Eram preços que de tão baixos acabavam por confundir a cabeça já não muito redonda das pessoas que sofriam dado ao preço vil pago a um litro de leite. Conquanto a loja de eletrodomésticos anunciasse uma TV de não sei quantas polegadas a menos de dez reais, o cacho de bananas madurinho para o resmungão Sebastião era entregue na feira das quartas-feiras a menos de cinco. Era um disparate tão imenso que dava para desconfiar.

A vida de nosso herói não era fácil. Da mesma forma que seus vizinhos viviam às turras com a subida (sempre embarreada) que o caminhão de leite tinha de fazer de dois em dois dias para buscar a produção parca, o tanque de expansão novinho, ainda com muitas prestações a pagar, era esvaziado de uma chupada apenas pelo caminhão seminovo da cooperativa que se salvou da bancarrota um dia destes.

A sua poupança fora de vez sugada pelos altos juros a ele cobrado pelo banco argentário. Antes ali havia cerca de duzentos mil e poucos reais. Agora foi reduzida a undécima parte disso. E era o que tinha o Tião para passar o fim de ano com a família de muitas bocas famintas. Era a esposa Marieta, os dois filhos gêmeos, Tiãozinho e Pedrinho, e a única filha não mais donzela que teve a infelicidade de cair na desgraça por ter se deitado uma vez apenas com um sujeito mal falado e a seguir criou barriga. Nunca mais se teve notícias do pai ausente. E o pobre Tião Resmungão de pai teve de acumular a lida de avô. De aí em diante de quatro barrigas roncando passaram a seis. E como era linda a netinha da família Buscapé! Dava gosto ver aquela menininha de olhos azuis, pele clarinha como flocos de algodão, dois pezinhos que mal cabiam na mais mínima sandalinha de pano fino, dada de presente por um parente longe do pai da criança.

Já que novembro terminava por terminar, a arvorezinha de Natal se fez presente num cantinho da sala modesta, um dos três cômodos da casinha tosca, com que dinheiro Tião compraria os presentes, faria a ceia da noite festiva, já que estava numa pendura danada. Devia ao padeiro, ao vendedor de ração, inclusive a pessoa que a ele vendeu um produto que prometia acabar com as moscas que infernizavam a vida das vacas, e nada mais foi que uma amara ilusão.

Mas, valente, guerreiro, não podia dever nem um cigarro que nunca fumou, Sebastião foi a luta. Mais uma vez e meia.

Calçou a botina gomeira, apertada no calcanhar, nos fundilhos inseriu a velha calça herdada de um parente perto, vestiu a manjada camisa de ir à missa das dez, estava em falta com o padre, e lá se foi à cidade, com algumas únicas economias no embornal velho e roto por mordida de rato gordo.

Eram exatamente míseros duzentos reais.

Em todas as partes se anunciava a famosa Black Friday. Uma liquidação que se dava em algumas sextas feiras, antevéspera de Natal.

De carona no velho caminhão leiteiro, como na boleia iam senhoras de fino trato, ao Sebastião sobrou apenas um lugarzinho espremido entre latões de leite chacoalhantes, entre peões egressos da panha de café.

De repente de ouviu o ribombar dos relâmpagos. Raios riscavam o ar cinzento. E, num átimo a chuva desceu. O pobre desinfeliz Tião, recém-saído de um banho acabou tomando outro. Só que ao invés de sabão foi um barro grudento que lhe tomou de escuro amarronzado a fatiota recém passada pela mulher. E, o antes chique Sebastião ficou parecido a um mendigo dormido debaixo de um viaduto debaixo de uma goteira enorme.

Uma vez na cidade não teve como trocar de roupa pois uma muda não tinha.

De posse dos duzentos reais, em notas de dez, entrou numa loja de produtos baratos. Como pilhas seminovas, escovas de dente usadas, fraldas de um único uso, roupas usadas com jeito de anciãs. Bem fora de moda.

Com a grana no velho embornal surrado foi indo, recuando, procurando algo para levar a casa. A loja estava entupida de pessoas. A maioria boa. As demais não tanto.

Nos fundos da loja da tal Black Friday, quando enfim pensou ter comprado de tudo um cadinho, já com o embornal vazio, e as dobras do cotovelo cheias, ao passar pelo detector de produtos de onde não foram retirados os selos da loja, acabou a sirene buzinando em direção a sua pessoa sabidamente honestíssima.

Foi preso por afanar um radinho de pilha que nunca funcionou a contento. E ele havia pago vinte reais pela merdinha a pilha gasta.

Passou a noite no xilindró. Acordou vendo o sol nascer quadrado.

Por não ter como pagar a fiança, estipulada em dez mil reais, nunca viu tal importância na sua vidinha modesta, os duzentos mil já eram, o banco acabou engolindo-lhe a poupança ajuntada a duras penas, as semanas se foram e Sebastião foi ficando naquela cela lotada.

Até que numa segunda, quando pensava que tudo estava perdido, era dia vinte e quatro de dezembro, e que mês magro havia sido aquele, Tião Resmungão foi solto resmungando. Esconjurando a maldita Black Friday. Que, no seu entender resumido era apenas mais uma maldita Baita Fraude. Que nunca mais o pegou de frente.

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