Feridas insepultas

Ontem, ainda cedo, ao descer à cozinha da minha casa, conto dois lances de escada em caracol, a fim de tomar minha vitamina costumeira, subindo de volta sem o devido cuidado, num momento quando fazia a curva acentuada desequilibrei-me, tentei me agarrar ao corrimão enfeitado de pontas cortantes e tive minha mão esquerda atada a uma das pontas de lança.

Como doeu naquela hora exata. Fiquei dependurado sem como gritar. Foi uma dor lancinante. Minha esposa estava entregue ao Deus do sono. Meu filho e sua mulher da mesma forma dormiam a sono desfraldado.

Com jeito consegui me livrar. Foi preciso acordar o macho de plantão dentro de mim. Com a boca chupei o sangue que brotava da ferida em dois dedos da mão que ajuda a digitar este texto que agora nasce. Fui rápido ao banheiro.  A água estava fria que saía da torneira da pia. Foi que o ajudou a suportar a dor que de pouco feria a pele fina da minha mão esquerda. Envolvi a palma da mão com uma toalha dependurada no lugar de sempre. O sangue cessou de jorrar. A dor, não.

Tinha uma pequena cirurgia marcada para as oito daquele mesmo dia. Uma vez no consultório, o relógio assinalava menos de sete, ainda consegui escrever um texto postado no face no dia de ontem. Que tratava de dar um basta na morte e falar de vida.

Ao vestir a luva de látex como senti dor naquela hora. Foi uma dor pertinente a ferida insepulta que tinha na palma da mão esquerda. Ela ainda estava aberta. Era uma ferida superficial. Quase nada em se comparando com as feridas que ainda trazia abertas na alma reconditamente escondida dentro de mim.

Ainda trago nas lembranças feridas múltiplas dentro do meu cerne.

Lembranças fugidias. Mas são, como as que trago ainda na palma da mão, tão doidas como elas estavam no dia de ontem.

Ainda me lembro da enfermidade pertinaz por que meu pai passou. A doença de Alzheimer deixa marcas não apenas na pele de quem a padece, como também nos circunstantes familiares.

Ele em um ano foi jogado a um leito. Antes disso, ainda me lembro, uma vez na hora do banho, apenas minha mãe cuidava para que ele não caísse ao piso duro do chuveiro, não estava presente a ajudá-la em sua difícil missão de cuidadora inexperiente.

Essa e muitas outras são feridas insepultas que trago nos pensamentos. Desde que meu pai morreu junto a mim.

Outra situação que não me deixa, quase sempre, foi quando meu cãozinho de nome Rebel veio a falecer. Foi na mesma rua que daqui se avista, pelos fundos, defronte ao hospital onde trabalhei quando aqui cheguei. O pobre tinha a intenção de me defender de um cão maior. E passou ao além cheio de mordidas pelo corpo escuro. Foi outra ocasião que deixou feridas não cicatrizadas dentro de mim.

Quando minha mãe morreu ainda sinto a dor que ela talvez não sentisse. Acompanhei-a hospital adentro. Ela ainda andava. Trôpega. Claudicante. Fomos juntos ao centro cirúrgico.  E ela, ao se despedir de mim, deixou outra ferida insepulta doendo mais ainda que quando rasguei a mão na escada. Bem mais.

Quando minha filha foi ao Rio de Janeiro, de mudança, tomou o ônibus na rodoviária, de novo a dor me cavoucou o peito profundamente. Foi outra ferida rasa que me deixou no âmago sensibilizado. Ela não deixou marcas profundas como quando meus pais morreram. Pois minha filhota linda não iria morrer. Apenas se separava de nós, em busca de seu destino maior.

Hoje tenho completos sessenta e oito anos de vida. Não olho atrás. A frente miro.

Foram anos passados bons. Poderia dizer perfeitos. Se pudesse faria tudo de novo.

Minhas feridas na palma da mão não doem mais. Embora ainda estejam insepultas.

Mas, meu pobre coração sofre ainda mais. Por que razão, indago?

Isso se explica pela maldita sensibilidade. Aprecio sofrer.

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