Começar de novo

Foram mais de quarenta anos desde quando aqui cheguei.

O ano preciso foi um mil novecentos e setenta e sete. Maio, foi o mês.

Vim da Espanha. Precisamente de Madrid.

Um mil novecentos e sessenta e seis foi um ano cheio de descobertas. Não fui às touradas. Nem assisti ao futebol.

Comodamente alojado na Casa do Brasil, tendo roupa lavada, comida à mesa, morando numa habitação confortável, apenas em minha companhia, ali passei um ano inteiro. E ainda tem quem diga que morar no estrangeiro é ruim…

Pra mim não foi.

Além da experiência saborosa de me imiscuir nos avanços da urologia ainda pude conhecer gente maravilhosa. Os de língua inglesa aprendiam o espanhol com mais correção. E nós, latinos, aprendíamos o portunhol. Uma mistura nada correta da linguagem de Miguel de Cervantes com o nosso português. Escrever, então, passou a ser uma temeridade. Interrogação ao começo da frase não nos entrava por entre os dedos da mão. Ao ouvirmos a palavra “embarazada”, em espanhol, pensávamos em outra coisa que não gravidez. E por aí caminhavam os senões. Agora o sol entra pela “ventana” da minha janela. Janela e ventana são palavras sinônimas. Isso depois aprendi.

Foram doze meses de aprendizado. Corri metade do mundo. Fui à África, Ásia, passei pela Europa como mochileiro. Atravessei o canal do Bósforo. Onde provei narguilé e comi peixe frito. E voltei ao meu país, depois de doze intermináveis dias de navio. Numa cabine do subsolo, embora saiba que falar em subsolo numa embarcação enorme como aquela é um ledo equívoco. Viajar em terceira classe não nos torna desclassificados. Ao revés. De lá debaixo se podem ver os peixes mais de perto do que os felizardos em cabines superiores. Que pensam ser superiores a nós, os pobretões descamisados.

Cheguei ao porto do Rio de Janeiro, onde fazia um calor dos infernos, usando uma jaqueta de couro marrom, comprada na Espanha, fumando cachimbo, e usando uma barba espessa a me cobrir parte do rosto pálido de frio. Até então. Meus pais me esperavam no cais do porto. Apenas eles e eu. Ávido por ganhar o Brasil de corpo e bisturi sedento de abrir cavidades. Ou inserindo aparelhos finos pelo canal uretral. A retirar próstatas hipertrofiadas. Que incomodavam a saída da urina.

Assim foram os anos vindouros. De mil novecentos e setenta e sete até nos dias de hoje pude construir um modesto patrimônio. Passei vinte anos a fio operando dias e noites nos três hospitais. O telefone fixo, ainda não haviam nascido os tais celulares, sem os quais ninguém hoje vive infeliz, não me deixava dormir. Talvez venha de aí a minha incapacidade de conciliar o sono. Tenho medo de a noite me assombrar com os seus assombrações peludos.  Durmo bem menos que os conselhos que ouço para dormir pelo menos oito horas. As quais reduzo a apenas duas ou mais delas. Para mim são suficientes, lucubro eu, com meus senões.

Em mais de quarenta anos de profissão dei conta de comprar um pedaço de chão sujo. A roça que tanto amo, a qual me deu incontáveis prejuízos com a produção leiteira, agora arrendada a um valente peão que entende de vacas baldeiras, eu mal sabia a razão de o leite ser branco e a vaca ser preta como carvão frio, foi a razão dos meus tropeços na intenção de enricar na profissão.

Há anos poucos atrás passei o imbróglio a outras mãos. Felizmente a batata quente foi mudada de mão. Minhas vacas hoje vivem felizes. Bem alimentadas, com o fluxo que emerge de suas tetas em maior quantidade, fazendo enricar não o dono da propriedade e sim o lacticínio para onde vai o leite.

Que mixórdia pagam hoje ao litro de leite! É um valor tão irrisório que mal permite comprar um copo de cerveja numa mesa de bar. Nem um pão de queijo frio numa padaria qualquer.

Em minha amada cidade passei anos a fio operando noites adentro e com o sol a raiar. Foram anos e anos a depositar dinheiro graúdo na minha conta hoje reduzida a migalhas. Como as que os passarinhos bicam em suas horas vazias.

Hoje, janeiro de um ano novinho, dia dez indica o calendário, ao constatar meu saldo bancário, mais e mais magricela, reduzido a pé- de- chinelo, que comparação mais leviana, quase zerado, aprendi que tenho de começar tudo de novo.

Como naquele saudoso um mil novecentos e setenta e sete quando aqui cheguei, vindo da Espanha, precisamente de Madrid, trazendo na maleta escura sonhos azuis. E muitas ideias a pô-las em prática. Aqui.

Do jeito que está não posso continuar. Fazer o quê? Começar tudo de novo. Não um talvez. Por certo, na minha insensatez. Que não permite outro talvez.

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