O homem que carregava às costas o peso do próprio passado. Desgraciosamente

O que fazer da vida quando o passado a gente incomoda? Quando ele não nos foi alvissareiro.  Foi triste e acabrunhado.  Melancólico e por demais pesado?

Assim passa a vida, se aquilo pode ser chamado de vida, do meu personagem de hoje, cedo, dezoito de janeiro.

Seu Antenor, de sobrenome por mim ignorado, nasceu quando faltou luz na maternidade. Aliás, aquilo onde o menino nasceu nem podia ser chamado de hospital. Era um quartinho sujo. Paredes sujas pelas cacas de morcegos. Maritacas também costumavam deixar suas marcas pelas paredes cinzentas, da mesma cor do passado da pessoa enfocada na crônica de agora. Um cheiro nauseabundo de esgoto arrastava-se pelas narinas de quem por ali passava.

Mesmo assim Antenorzinho galgou valentemente os degraus da vida. Só não fez parte das estatísticas mundanas de mortes prematuras por causa de uma pessoa que, ao ver a situação de penúria por que passava a criança, dela se apiedou.

Dona Manuela, uma senhora de muitas bocas para criar, mais um menino não soube evitar entre as suas paredes acolhedoras.

Antenorzinho passou a ser o décimo quinto filho daquela mãe postiça. Que de sua genética contabilizava apenas uma boquinha. As outras não eram delas.

Mas o carinho que dona Manuela emprestava aos seus adotados era muito maior que muitas mães verdadeiras dispensavam aos seus filhos de fato.

Antenor estudou até finar o primeiro grau. Foi aluno mediano. Nem entre os piores. Nem os melhorais.

Destacou-se entre os mestres pela educação fidalga. Não deixava a professora levar os cadernos ao final da aula. Ele mesmo os levava a sala da diretoria. Prestimoso, inteligente, cortes, um verdadeiro e elegante maestro entre músicos desafinados.

Aos quinze anos, de volta da escola, num bairro de má fama, Antenor foi testemunha de um estupro. Um homem alto, espadaúdo, tomou uma colega do jovem pelo pescoço. Levou-a a um lote baldio, arrancou sua roupa com violência, e, quando tentava conseguir seu intento, eis que o corajoso Antenor se interpôs entre a vítima e o bandido. A jovenzinha safou-se ilesa da tentativa de curra. O mesmo não aconteceu ao salvador da meninazinha.

Meia hora depois estavam na delegacia o corajoso jovem Antenor e seu algoz. O pobre salvador da honra da virginal mocinha levou um chute forte nas partes baixas. O que lhe provocou a perda irremediável de ambos os testículos. Ficou estéril depois de então.

Levou um mês depois do infausto ocorrido. Ainda manquitolava a olhos vistos depois de tempos perdidos daquela noite malfadada.

Com a bolsa escrotal vazia, pensando numa família da qual nunca poderia ser o pai, mesmo assim o jovem Antenor não se alquebrou ao peso do próprio infortúnio.

Amasiou-se com uma rapariga de má fama. Certo de deles não nascerem rebentos.  Mas, contrariando a lei da gravidez, um dia Joana, a moça com quem Antenor se concubinou, apareceu embarrigada. Mesmo sabedor que o filho não seria dele, quando a criança despontou do canal do parto, sujinha de líquido amniótico, o pai, pai é quem cria, não quem empresta a ele os genes, a ela se afeiçoou.

Pena que a morte na porta da casa do casal veio a bater, num dia de chuva imensa. A enchente que se formou tomou conta do bairro inteiro. E acabou levando o bercinho sem cor da linda menina. Só dias depois encontraram-lhe os restos mortais de carinha para cima. Azulzinha, mortinha com um passarinho de pouco saltado do ninho, sem asas prontas a voar.

O infortúnio continuou a fazer parte dos descaminhos do desditoso Antenor. Já separado daquela mãe, que lhe deu um filho que nem era seu, o já adulto senhor Antenor continuou na sua sina malsinada.

Não tinha renda para sustentar família. O que percebia, ao final do mês, mal dava para seu próprio sustento. O que diriam outras bocas famintas?

Já idoso, sênior, Antenor perambulava pelas ruas, cedo.

Sempre o via andando só. Era ele e nada mais que a própria pessoa.

Sempre curvado sobre seu pescoço não mais esguio. A coluna mais alta se dobrava sobre ela mesma.

Quando nos víamos ele me cumprimentava. Cabisbaixo, sombrio, melancólico e tristonho.

Sempre fidalgo. Educadamente elegante.

Um dia soube notícias do Seu Antenor. Ele não se mostrava a mim, aos passantes, havia um mês inteiro.

Pelo noticioso das cinco e meia a novidade me fez ir às lágrimas, que da minha face escorreram.

O velho Antenor, na noite que não se fez manhã, acabou de se jogar sob as rodas de um caminhão enorme. Nada restou de sua pessoa esguia. Antes ele era assim.

O homem que carregava às costas o peso do próprio passado despediu-se da vida de uma maneira cruel.  Talvez, onde ele estiver, com sua pessoa triste, quem sabe, novamente a vida a ele irá sorrir. Desgraciosamente.

 

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