O homem que naufragou dentro de si mesmo

Quem ainda não se sentiu amargurado ao acordar cedo pela manhã?

Ainda mais depois da folia, dos tempos em que o carnaval ainda deixava suas cinzas esparramadas por sobre a avenida, músicas não mais se ouviam, batuques deixavam ecos vazios, pessoas se lembravam de que quarta-feira era nada mais nada menos de que vestígios cinzentos de um tempo de pseudo alegria, pois na quinta recomeçava tudo de novo.

E este homem em foco, desiludido com a vida que levava, pai de família, amante dos filhos e da esposa a quem amava mais que a si mesmo, uma vez desempregado, devendo mundos e fundos, assim que o bloco carnavalesco se fez ausente, novamente, com o jornal na dobra do braço direito, lá se foi ele em busca de ocupação.

Ele colecionava mais de quarenta anos de provação.

Foi bancário até os trinta anos. Depois, alegando falta de lucro, a casa bancária achou por bem mandar ao olho da rua os mais idosos, e acabou trocando os de maiores salários por dois ou três deles.

Osmar Prado, este lhe era o nome, embora amargurado com a dispensa impensada foi a cata de outro emprego. E como contava naqueles dias com mais de trinta e cinco anos era considerado velho demais para ingressar em outro banco. Embora a experiência fosse por demais importante, outros mais jovens, e menos capacitados, eram preferidos. E o pobre Osmar passava dias e outros assentado em outro banco. Era um banco tão duro quanto lhe era a vida de desempregado.

As contas se amontoavam por sobre a velha escrivaninha. Eram calhamaços de papel, todos vencidos, a perfilarem sobre o tampo daquela velha companheira dos tempos verdes da escola onde estudou um dia, pensando num futuro melhor para ele, sua esposa e companheira e os dois filhos que vieram depois.

Um casal de filhos lindos era a alegria do casal. Ambos tiveram de ser transferidos da escola particular para uma pública, cuja qualidade deixava a ver navios.

Foi preciso muita paciência para encontrar vaga naquela escola. Era longe do pequeno apartamento onde moravam. Era um imóvel comprado graças a um financiamento feito à Caixa Econômica, onde fora funcionário, quando os anos bons ainda lhe sorriam.

Por sorte a vã que levava as crianças não fugia a hora. Todas as manhãs aparecia na esquina pontualmente as seis da manhã.

E os dois pimpolhos se despediam dos pais com um lindo sorriso a mostra.

Osmar deixava a morada antes de o galo cantar. Tomava um café requentado, comia um pão seco de ontem de tarde, e ia a luta, depois de ver, no jornal de ontem, a página dos classificados onde os empregos eram listados.

Como o passe do ônibus coletivo recém caducou, e o valente Osmar não tinha como comprar outro, ia pelas próprias pernas em busca de nova colocação.

Distribua currículos de porta e porta. E não se importava com as portas via de sempre fechadas ruidosamente em sua cara cansada.

E como trabalho de carteira assinada estava cada vez mais difícil, poder-se-ia dizer impossível, naquela cidade grande, a exemplo de outras localidades menores…

E as contas não esperavam para serem pagas. Os juros tiravam o sono escasso do cada vez mais esmorecido Osmar.

E ele tentava fazer biscates. Vendeu balas num semáforo. Quase foi atropelado por um carro em movimento. Dias ele passava horas baldias tentando vender água nas esquinas. Mesmo num calor verãozinho as pessoas agradeciam o oferecimento alegando falta de dinheiro trocado.

Até mesmo fazer malabares, fazendo graça, vestido de palhaço, um palhaço por fora alegre, por dentro triste e infeliz, Osmar tentou amealhar alguns trocados. Mas os motoristas, como sempre apressados, passavam por ele e não tinham tempo de dar-lhe uma moedinha que fosse. Uma nota de dois reais um dia a ele fez sorrir. Mas era insuficiente para pagar a mercadoria comprada a pagar depois. E mesmo a água mineral, a caixinha de isopor, acabou ficando na pendura. Da mesma forma que as contas vencidas. Sem tempo a serem quitadas. Não se sabia quando.

Um mês, dois, um semestre inteiro, se foram.

A família de Osmar acabou por perder o único bem que possuíam.

A penhora da caixa reclamou o pequeno apartamento de volta por falta de pagamento da penúltima prestação. E foram os quatro ao olho da rua.

E como foram difíceis os primeiros dias debaixo de um viaduto. Era mês de fevereiro. Chovia a baldes cheios.

Os filhos foram banidos da escola. Por falta de endereço certo eles não poderiam informar ao diretor o paradeiro.

A mulher de Osmar, grande companheira, acabou enferma. Foi internada via SUS num hospital falido. Teve alta sem ter conquistado saúde. O que contribuiu para piorar ainda mais seu estado. Que só não era pior pois a palavra pior era a primeira e única no dicionário da família Prado.

Quis o destino que dona Inês, a esposa dedicada de Osmar, foi levado ao céu por mando de Deus pai. Talvez para ela tenha sido melhor que a vida miserável que estavam vivendo.

A partir de então só restou a Osmar os dois filhos menores. E como cuidar deles? Sem a mãe por perto? Sem trabalho, sem teto, sem comida, sem alento?

Um dia cinzento, ao acordar sem ter dormido, Osmar, naquela manhã nebulosa, teve um estranho pressentimento.

Sonhou que tinha sido levado a um lugar lindo. Onde não lhe faltava nada. As crianças eram felizes a sua maneira infantil. Estudavam numa ótima escola. Ele mesmo foi empregado num banco como gerente. Ganhava o suficiente para fornecer a família que tanto amava uma vida tranquila. Nunca mais, pensou ele, iriam passar necessidades. Morar onde as estrelas davam as suas piscadelas intermitentes, jamais. Ao desabrigo de um teto, nunca. Eles todos jamais passariam fome. As contas nunca mais entulhariam o tampo da escrivaninha, velha companheira de mocidade.

Uma vez acordado, no mesmo ambiente, debaixo de uma ponte que ameaçava ruir, de verdade, Osmar, contrafeito e contrariado, percebeu que aquele sonho bom era nada mais nada menos que pura fantasia. Fruto de delírio terminal.

As oito horas daquela manhã, em pleno verão tropical, na quarta-feira de cinzas, um passante descobriu, debaixo de um cobertor velho e surrado, uma pessoa a olhar o vazio do nada. Foi constatado pelo policial que o pobre Osmar havia naufragado dentro de si mesmo. Não restando nada mais para contar sua triste história. Que bem reflete a de outros pais de família, pelo Brasil afora.

 

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