“Mãe! Não da pra tirar um pouco o peso da vida”?

O sol amanheceu de uma quentura sem par naquela manhã de sábado. O calor não deixou dormir a família toda da menina Aninha.

Também pudera. Naquele barraco tosco, fincado na areia, tanto o padrasto, como a mãe legítima e mais uma boquinha novinha a passar fome, não tendo onde morar, já que foram despejados de uma casinha perto por não pagarem o aluguel, a temperatura lá dentro oscilava entre quarenta e mais um tanto.

O padrasto viciado fumava sem parar.  A mãe, faxineira vivia de bicos aqui e acolá. E restava a pequena Aninha, aos menos de seis aninhos, esmolar na praia, levar à casinhola, ao fim do dia, com o sol já puxando as cobertas, se revezando com a lua, toda a féria do dia. Mais ou menos quinhentos reais era o quanto ela ganhava ao mês.

A pele da pequena era mais morena que um jambo maduro. De tanto sol a lhe caboucar a tez franzina.

Andando na areia quente da praia, lá ia e vinha a pobre entre “nãos e volta depois”.

Isso quando um guarda não a repreendia rispidamente com um safanão doído. Não se contam às vezes quando Aninha voltava ao barraco com um vergão já arroxeado na perninha fina.

A pobre menina nunca havia ido à escola. O trabalho de pedinte não lhe dava tempo. Era a única, já que a mãe ficou enferma, que conseguia levar ao lar, que não era doce, a importância irrisória de quinhentos reais ao mês. Era o quanto tinham para se alimentar, vestir, e tentar dormir pensando no dia seguinte. Que seria, com certeza, ainda pior.

Foi neste sábado quente, deixando a mãe doente deitada em seu colchão improvisado, um resto de trapos recolhido ao lixão ali perto, o padrasto foi preso como traficante. A irmãzinha, ainda bebê, felizmente foi levada dali pelo conselho tutelar. Mais uma vez a guerreira Aninha saiu de casa rumo à mendicância.

Nessa altura de sua vidinha errante a meninazinha já colecionava em sua vidinha pobre dez aninhos completos naquele mês de março. Mas a sua aparência mostrava pouco mais de seis. Era desnutrida, sofrida, magricela como uma seriema desengonçada.

Mesmo sofrendo na pele toda a sorte de atropelos Aninha não desanimava. Saía de casa cedo para tentar oferecer a mãe um pouco de conforto. E como ela amava a sua progenitora. Afinal, a partir de agora, era apenas ela e sua mãe o que restou daquela família sofredora.

A partir dos doze anos Aninha tentou mudar de vida. A vida de pedinte não a recomendava a nenhuma ocupação decente.

Quem sabe conseguiria um lugar melhor? Sentia-se capaz de ir além de uma menor abandonada. De uma pedinte maltrapilha. Fosse como menor aprendiz. Ou mesmo auxiliar de faxina. Numa loja linda perto de sua praia quantas vezes ali passou a admirar as roupas vistosas exibidas na vitrina.

Naquele sábado que a folhinha arrancou Aninha tentou mudar de vida. Tomou um banho caprichado, penteou os cabelos queimados pelo sol, vestiu a melhor e única roupinha que tinha, e foi à luta.

Apresentou-se à gerente da loja com olhos suplicantes. E pediu, encarecidamente que a moça a ajudasse a mudar de vida. Foi enxotada como a um cão vadio. E dali saiu chorando a olhos molhados.

No dia seguinte voltou à praia. Com uma caixinha de balinhas de goma a tentar vender o produto. Nas primeiras horas parecia que a sorte iria mudar. Conseguiu esvaziar todo o conteúdo. O lucro resumiu-se a duas moedas de um real. Uma quantia irrisória. Que mal daria para comprar um litro de leite. Ou dez pães de sal.

Aninha voltou a esmolar. Desta vez mudou de lugar. Foi à porta de um shopping elegante na zona sul da cidade. Assentada ao meio fio, com seu olhar vazio, suplicando aos passantes que, por favor, em sua mãozinha fina colocassem duas moedinhas ou o que fosse para levar a casa. Sua mãe estava doente. Jurava ser verdade. E as pessoas, que por ali passavam, apressadas e inconsequentes, ou davam uma esmola a pequena, ou faziam da sua vida dura ainda mais.

Para voltar ao barraco a pobre andava como cachorro sem dono. Quando não conseguia passe de ônibus não tinha alternativa senão voltar caminhando. E andava quilômetros e mais deles com suas perninha frágeis como gravetos secos.

Ao chegar a casa encontrou a mãe ainda pior. Uma febre alta queimava-lhe a testa. Para levá-la ao pronto socorro teve de recorrer a um amigo taxista. Já que a ambulância do Samu tinha outras coisas mais importantes que fazer. E o pobre motorista, assoberbado de trabalho, alegou ter mais urgências a sua espera.

Joana, a mãe de Aninha, foi internada naquela noite ingrata. Mas deixou a unidade de pronto atendimento ainda pior de quando entrou.

Levada ao barraco infecto pelo mesmo taxista amigo a pobre Joana aos trancos e barrancos se recuperou. Acordou melhor que a noite anterior. Mais animada, até um sorriso aberto mostrou-lhe os dentes brancos.

Aninha estava ao seu lado. Pronta à nova rotina de trabalho. Se aquilo podia ser chamado de trabalho. Passar horas e dias esmolando na porta de um shopping elegante.

Antes de sair à luta, que vida sofrida passava a pobre menina, ela ainda disse a mãe, com seus olhinhos lacrimejantes: “mãe! Não da pra tirar um pouco o peso da vida”?

Foi naquela mesma manhã céu azul, um calor desvairado queimava o corpo de quem se atrevesse a sair ao sol, uma chuva bem vinda caiu de repente. Quem sabe a chuva repentina fosse o indício de dias melhores para a pobre Aninha? E em verdade foi. Uma alma caridosa, ao ver o sofrimento de mãe e filha, acabou tomando a sofrida Aninha aos seus cuidados.  E foram todos felizes até as manhãs seguintes. Tomara a vida inteira pese menos nos ombros daquela família unida. Igual a muitas que sobrevivem país afora. Neste desafortunado Brasil que observa com olhos díspares ricos e pobres.

Deixe uma resposta