Menina seriema

Quantas e quantas vezes vi, correndo na pastaria, aquelas aves pernaltas, ariscas, sempre em par, quando uma se desgarra da outra fica meio destrambelhada, e só se aquieta quando o macho, ou seria a fêmea, aparece na beira da estrada.

É um espetáculo ver seriemas desengonçadas fugindo da gente. Como se nós pudéssemos fazer mal a elas. Nem carne elas têm. Apenas pernas esguias, penas macias, uma cabecinha pequena que deve pensar apenas em escapar da gente, ou caçar cobrinhas ingênuas, seu petisco predileto, coisiquinhas que a nós não apetece. Cobras causam-no asco. E só pensamos em nos ver livres delas. Mesmo sabendo o quanto elas são importantes na cadeia produtiva.

Meninas da roça me recordam seriemas. Assim como os frangos nascidos no meio do pasto têm pernas longas. Pescoço comprido. E asas sempre prontas a voar.

Um dia vi uma mocinha da roça correndo na estrada. Tentei acompanhá-la. Ela logo se desvencilhou dos meus olhos. Penso tê-la visto avoar com suas asas imaginárias. Nunca mais a vi novamente. Até no dia de hoje. Há dois minutos atrás.

Como de hábito acordo cedo. Era antes da cinco quando deixei a cama em companhia dos seus lençóis.  A melhor hora para deitar no papel minha imaginação fecunda é antes do nascer do sol. Se ele nasce junto a mim deixo-o a me ditar o que meus dedos digitam neste computador incansável. Não sei se os ditames do sol são frutos da minha imaginação. O certo é que em dias nublados uma tristeza maldita não me faz lucubrar tanto assim. Prefiro escrever sob a luz do dia. Do que na escuridão da noite alta. Dias cinzentos existem. Quem não os têm dentro de si?

Como estava dizendo antes, nesta manhã agora tardia, para mim, na metade do meu caminho para o consultório deparei-me com uma garota esguia. Era alta demais o suficiente para trocar lâmpadas sem o auxílio de escadas. O bastante para chupar jabuticabas sem trepar no pé. Creio que ela teria mais ou menos bem medidos um metro e oitenta. Talvez mais. Ou menos.

Quanto à idade da menina moça, que andava a minha frente, acredito que sua carteira de identidade mostrasse menos de quinze anos.

Ela não tinha a cabeça pequena como das seriemas. Nem a plumagem daquela cor de açucena. Seus cabelos eram alourados e encarapinhados. Como ela deveria ficar bonita usando tranças.

As pernas eram finas como as das seriemas. Se quisessem correr distâncias infinitas quem seria eu para acompanhá-la?

Eu e ela andamos quase lado a lado por uns bons dois quilômetros. Ela sempre adiante de mim. Eu bem atrás.

Pelo visto ela estudava naquele grupo escolar por onde entrei para falar aos alunos sobre literatura. Acabei tendo um monólogo comigo mesmo. Mesmo assim valeu a pena deixar livros meus na biblioteca daquela escola estadual.

Por fim, já cansado de tentar acompanhar aquelas passadas gigantes, aquela ainda criança, perto dos meus muitos anos, a exemplo das seriemas pernaltas acabou alçando voo.

Penso tê-la visto voar. Desta vez solitária. Sem a companhia de um macho.

O voo daquela menina seriema não foi pela pastaria como de outras vezes. Em busca do que se alimentar. Ou tentando escapar da gente. Esta menina seriema, com certeza tem a intenção de voar mais alto. Rumo aos seus sonhos azuis. De ser alguém além de uma menina seriema pernalta.

Não tive tempo para perguntar-lhe o nome. Se por acaso ela ler este texto por certo saberá que ela é a menina seriema que meus olhos viram na manhã do dia de hoje.

 

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