Antônio acordou com uma estranha sensação de liberdade

Uma angústia profunda fez despertar aquele homem bom naquela segunda- feira meados de março.

Desde dias atrás ele não conseguia vencer o sono.

Vivia com a esposa. Dois filhos pequenos.

Até a um mês atrás todos viviam tranquilos.  Bem empregado numa fábrica de autopeças. Pelos bons serviços foi promovido a gerente. O salário não era de se jogar fora. Era o suficiente para pagar a conta do supermercado. O aluguel não sofria atraso. Aquele amontoado de papéis, boletos bancários, contas de luz e água, eram quitados antes do vencimento.

As prestações eram pagas em dia. A esposa amantíssima ajudava nas despesas. Os filhos estudavam numa escola pública de boa qualidade. Ambos eram alunos acima da média.

Uma vez ao ano se davam direito a férias de quinze dias. Mas logo voltavam da praia prontos a encarar a realidade de uma rotina enfadonha.

Mas, naquele mês de março chuvoso, nunca se viu tanta água descer do céu escuro, ao voltarem a casa depois de um dia pesado a casa baixa foi tomada pela enchente. Que adentrou porta adentro não restando um cômodo sequer a seco. Não era a primeira vez que o incidente acontecera. Sempre no verão. Mês de chuvas intensas que prejudicavam famílias de poucas posses. Moradoras da periferia das grandes cidades.

A família de Antônio não desanimou. De baldes nas mãos, munidos de rodos, depois de passar o dia inteiro tentando salvar o que restou da enchente, conseguiram voltar a viver novamente.

No dia seguinte lá se foi Antônio ao trabalho. A fábrica ficava a dez quilômetros de onde moravam. Uma distância até que razoável considerando-se os deslocamentos de trabalhadores de uma metrópole como São Paulo.

Ele tinha de tomar quatro conduções para chegar ao ponto final. Naquela manhã seguinte à enchente, um verdadeiro dilúvio, o transporte público entrou em greve. Mais uma vez o pobre Antônio chegou atrasado. Um ambiente pesado o esperava na porta da fábrica.

Ao entrar naquele galpão enorme uma lista estava pregada numa parede branca. Era a lista das demissões. E o nome dele constava naquela publicação inesperada.

Naquela manhã quase morta, já era meio dia, Antônio voltou a casa pensando em como contar a família a infeliz novidade.  Por ser funcionário modelo nunca lhe passara pelos pensamentos ser despedido daquela maneira ingrata.

A esposa sentiu o baque da notícia infausta. Os dois filhos apareceram para consolar o pai. A escola onde estudavam da mesma maneira entrou em greve. E os alunos tiveram de voltar com a mochila às costas sem saber quando iriam voltar.

Antônio passou a noite em claro. O que fazer no dia seguinte? Já não era tão moço para se ajeitar em outro emprego como aquele. Já contava com mais de cinquenta anos. E o mercado preferia os jovens profissionais, mais capacitados, dentro daquele crise enorme por que o país atravessava.

Mas, fazer o que?

Na manhã seguinte, de novo o valente Antônio partiu em busca de trabalho.  Passou o dia inteiro distribuindo currículos pelos arrabaldes. Todos que o recebiam prometiam pensar no seu caso. Mais um descaso se mostrava. Nada de oferta de emprego. Antônio persistia na sua luta inglória. Mais portas fechadas. Apenas esperanças vazias.

Um ano passou naquela situação calamitosa. As contas que eram pagas no dia certo se amontoavam no tampo da mesa. As prestações da mesma forma ficavam para o mês seguinte. O nome de Antônio foi parar em outra lista. A dos maus pagadores. Nunca ele teve o nome sujo. Era a primeira vez.

Desanimado o trabalhador de mãos limpas continuava a procura de ocupação digna. Não tinha vocação para ficar à-toa. O banco da praça não era a companhia perfeita para seus dias de labuta constante. Mas o desiludido Antônio continuava a viver de teimoso. Sem perspectivas de dias melhores.

A família de Antônio tentava ajudá-lo da melhor forma que podia. A mulher empregou-se como doméstica numa casa de gente abastada. Mas o que percebia era pouco para suprir as premências do dia a dia. Os filhos, sem escola, sem futuro, viraram flanelinhas numa esquina movimentada do centro. Antônio ficava em casa. Era ele que cozinhava, fazia faxina, e lavava a roupa de todos.

Ao fim do dia sentia-se um traste inútil. Uma vassoura sem pelos. Um balde furado. Um homem vazio.

Um ano esvaiu-se nele mesmo. A situação da família em nada mudou. Continuaram na mesmice do mesmo.

Era final de semana. O que fazer? Para o desiludido pai de família era o fim de seus dias. Não mais tinha prazer em nada.  A vida para ele perdeu o sentido.

Sábado amanheceu domingo.

O pobre Antônio passou mais uma noite de olhos abertos. Nem uma dose fortíssima de ansiolítico foi capaz de fazê-lo dormir.

No entanto ele acordou com uma estranha sensação de liberdade. Era como se um peso enorme tivesse sido retirado de seu peito inerme. Foi então que o infeliz Antônio voltou a fechar os olhos. E não mais despertou. A morte afinal o livrou daquela vida com a qual nunca sonhou. Se é que aquilo poderia se chamar vida.

 

 

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