Hoje acabei fazendo um raio xis do meu âmago

Já não era sem tempo. Uma tosse seca se arrastava indolente deixando todos ao derredor inquietos com meu estado de saúde.

Confesso um tanto quanto descuidado com meus mais de sessenta anos. Oito deles são contabilizados na esteira rolante do tempo. Em pouco menos de quatro estarei adentrando a casa dos setenta. Daí a quantos mais estarei conseguindo caminhar, andar com a velocidade de um pato arrastando asas, ter o tirocínio que me persegue nos dias de hoje, a clarividência que penso ter, embora muitos me considerem um tanto excêntrico?

Nem sequer imagino. Nem tento. Melhor continuar como estou. Pensando ser um menino com sua alminha ingênua. Apesar de a ingenuidade ter sido arrastada há anos inconsequentes.

Penso ser uma gripinha marota, embora me tenha vacinado contra ela, resultado de uma virose, que me faz tossir nestes tempos secos prenúncio de inverno. Mas ela já dura mais de uma semana. E as pessoas me recomendam que cuide de minha saúde. Faz tempo.

Tenho evitado o contato direto com meus pacientes. Mas como poder examiná-los criteriosamente nos dias atuais. Se não posso me achegar a eles?

Hoje passei a noite sem tossir. Mas, assim que o sol me acordou, fazia frio, já agora faz calor, a mesma tosse ranheta voltou a insistir.

Minha preocupada esposa, companheira de anos e anos ao meu lado, quase da minha idade, antes de minha descida caminhando solitário pela rua, encapotado, bem agasalhado, recomendou-me que fizesse uma radiografia dos meus pulmões. Prometi fazer. Mas ficou apenas na promessa.

Ao invés de um raio xis do meu tórax, ainda cheio de alvéolos sadios, nada iria dar na tal radiografia, achei melhor deixar aqui um raio xis do meu cerne.

Para isso não precisaria ir ao hospital. Aqui mesmo, no meu computador escrevinhador, deixaria melhor o testemunho dos anos todos aqui passados. Desde a minha infância perdida. Aos anos todos que me acolheram tão bem. Desde que me entendo por gente.

Feita a radiografia do meu interior, do fundo do interior mais recôndito do que penso ser, o que estaria escrito no laudo, dado por um inspirado doutor de almas?

Seriam estas as palavras escritas num papel amarelecido pelos anos? Ou seriam elas mais frutos de desenganos?

“Seu pulmão vai bem. Nada consta no parênquima bem insuflado. Tudo esta limpo. Nem uma manchinha sequer. Nenhum sinal de pneumonia, ou outra complicação qualquer”.

Mas, do lado de fora do laudo, salvo uma advertência de quem o escreveu, em letras miúdas seguem algumas observações.

“Você precisa ter mais cuidado com você mesmo. Não corra tanto. Não se precipite tanto. Seja mais prudente com as coisas que pensa serem irrelevantes.

Ouça os conselhos daqueles que lhe amam tanto. Não desafie a sabedoria dos mais idosos. Eles passaram por tudo aquilo que você passou. E bem conhecem os melhores caminhos que o levarão pra onde eles estão.

Não pense que a vida vai continuar cor de rosa azul como o dia de hoje. De repente pode cair uma tempestade. E ela vai pode complicar-lhe o destino”.

No mesmo raio xis, que não foi feito em hospital, e sim neste testemunho matutino de agora cedo, feito por inspiração minha, tão somente minha, agora o sol brilha forte, despi-me dos agasalhos, mais algumas linhas foram escritas nessa crônica de hoje.

Meu cerne ainda apresenta algumas turbulências poucas. Por mais que escreva, que lance livros, não consigo desovar nem uma ínfima parte de minha lavra fecunda. Livros entulham as prateleiras de minha casa. Às minhas costas perfilam dezoito volumes. Em mais algum tempo mais um romance, de nome Raquel, pretendo terminar algum dia. Não sei quando. Tenho receio de que seja mais um livro encalhado, entre tantos que escrevi até hoje.

Na radiografia, sem aparelho de raio xis, que ando fazendo dos meu mais de sessenta e oito anos, confesso que foram anos bons. Tomara os que me restam sejam iguais ou melhores do que todos eles por que passei.

Não sei quantos anos mais viverei. Oxalá sejam anos de convívio fraterno. Amistosos, com pessoas tão boas quanto aquelas que encontrei vida adentro.

Que entendam meus desalentos. Meus instantes de apatia e desencantos.

Sem querer me alongar demais, ficaria um texto longo, quase um conto, termino este raio xis do meu âmago passando a vocês, meus leitores, que, se não me preocupo tanto com minha saúde, não me levem a mal.

Como médico devo me preocupar mais com a de vocês. A tosse que tem me atormentado logo passa. Como a uva se torna passa. Nós passaremos. Eles passarinhão. Apenas o encanto pela vida não deve passar. Senão o que seria de nós? Sem encanto os desencantos turvariam-nos a visão. De um dia tão lindo. Como este, treze de junho. Dia quando resolvi traçar uma radiografia de meu âmago. Bastante ensimesmado neste dia tão lindo.

A tosse passou de repente. Talvez ela volte. Mais ao cair da noite. Em poucos dias a virose passa. Tentarei não contaminar meus circunstantes com essa gripinha marota. Mas tomara contamine a todos com minha disposição de viver. Se não eternamente enquanto o desejo e o amor que tenho pela vida não passar. De vez pra sempre. Oxalá…

 

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