Depois da cerração baixa a saudade

Sábio dito popular: “cerração baixa mais tarde o sol racha”.

É assim que nasceu a manhã no dia de hoje – quatro de julho.

Uma densa névoa brancacenta, assediada por um vento frio, fustigava-nos os cabelos que logo se fizeram ao desalinho.

Pela janela do meu consultório pouco se via ao longe. O casario tinto em cinza quase não se deixava ver. Algumas árvores da praça central eram vistas cobertas por uma neblina densa. Nenhum sinal de passarinhos. Eles devem estar dormindo.

Hoje acordei com um sentimento estranho. Mistura de saudade e lembranças de um colega amigo.

Foi ontem que aconteceu o previsível desenlace. Passei pelo hospital, ao cair da tarde, voltando da academia pra onde sempre vou para tentar retardar a velhice. Naqueles ferros duros, naquela esteira deslizante, tento, não sei se vou conseguir, inserir mais anos aos meus já bem vividos sessenta e oito.

Felizmente a saúde tem sido conivente aos meus desejos. Até quando? Nem sequer imagino.

Nunca fui um sedentário. Disso me gabo. Minhas pernas andarilhas aqui estão para testemunhar o dito.

Depois de passar pelo apartamento do meu primeiro neto, Theo, e ver como ele estava, como sempre arteiro e sorridente, sabedor da notícia do passamento de um colega, quatro anos mais jovem do que eu, emérito cirurgião, fui, de corpo presente, emprestar a sua família a minha tristeza. E meu abraço amigo.

Foi uma morte anunciada. Meu colega, de tantas andanças médicas, havia partido prematuramente.

Roberval Bello se foi. Deixando atrás um rastro de simpatia pura. De disponibilidade única. De competência profissional. De amor aos seus pacientes. Fossem eles oriundos de sua vasta clínica particular ou advindos do sistema único de saúde.

Quantas e quantas vezes nos cruzamos naquele centro cirúrgico que daqui se permite ver pelo lado esquerdo. Quantas e quantas vezes nos vimos pelas ruas de nossa querida Lavras, cidade que não era seu berço, mas a cidade dos ipês e das escolas tinha por ele um chamego enorme.

Confesso que o doutor Roberval era um tanto descuidado com sua saúde. Não caminhava como eu. Não corria como eu fazia, pelas estradas vicinais das cercanias.

Ainda me lembro, era cedo na manhã, quando ele estacionou seu carro pertinho do nosso hospital. Eram alguns metros apenas. Durante a nossa pequena caminhada ele arfava de cansaço. Não tinha o preparo físico ideal.

Mas, com o bisturi em punho, dava aulas de técnica cirúrgica. Era um escrutinador de corpos. Operava com maestria desde uma próstata crescida até uma vesícula recheada de pedras. Não tive a sorte de tê-lo ao meu lado no campo cirúrgico.

Éramos de especialidades afins. Enquanto eu retirava cálculos renais ele fazia intervenções seguras pelo abdome de muitos. Enquanto eu sacava próstatas enfermas ele retirava apêndices inflamados. Quantos pacientes passaram pelas suas mãos ágeis. Quanta gente a ele deve a vida.

Ontem Roberval se foi. Depois de uma visita rápida aos seus restos mortais passei pela igreja matriz. Encontrei-a quase vazia. Não fosse pela presença de algumas imagens de santos, por um ou outro passante, apenas eu e a saudade dele estávamos presentes.

Orei por alguns momentos. Pedi ao Deus que não se deixa ver, mas está presente aonde quer que se vá, pela alma caridosa do doutor Roberval. Deixei aquele templo mais aliviado. A morte do colega amigo me fez chorar.

Hoje desci a rua, como de costume, passei pela mesma Santa Casa, mas não tive coragem de passar os olhos nele pela última vez.

Prefiro guardar sua imagem como dantes. Sorridente, vendendo saúde, cuidando da saúde dos outros.

Hoje uma densa cerração mais tarde se desfaz.

Mas a lembrança do colega e amigo não vai se desfazer jamais.

Ele vai sempre estar vivo naquele centro cirúrgico. Com sua capacidade única de operar.

Esta cerração, que ainda persiste, logo vai ceder lugar ao sol. Conforme apregoa o dito popular.

Mas depois que ela se dissipar, ao ver o sol despertar, ainda vai restar uma saudade imensa do doutor Roberval.

Pessoas como ele não deveriam morrer. Segundo outro colega, escritor inovador de nossa linguagem, doutor Roberval ficará encantado. Como o mesmo sol que aquece a terra depois que a névoa passar.

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