Doutor Bom Senso

Pra tudo na vida há de se ter paciência, comedimento, que só a experiência dos anos nos traz.

Essa era a máxima de um doutorzinho recém-formado.

Gente humilde, nascido num lugarejo pequeno, de onde teve de se mudar bem cedo para conseguir atingir seu sonho que era ser médico.

Luizinho não era aluno exemplar. Numa escola pública onde concluiu o degrau primeiro de sua formação era tido meio abobado.  Suas notas eram suficientes para passar de ano. Graças a uma professora de português, sua aparentada, venceu aquela etapa primeira, que se seguiria a muitas outras pela vida inteira.

Para entrar na faculdade foi um Deus nos acorda. Tentou, persistiu, até conseguir vencer o vestibular.

Era uma faculdade particular.  Empenhou até um pequeno carro que tinha para pagar os estudos. Mas, ao cabo de seis anos se viu doutor.

Como hoje em dia quem se forma em medicina tem de continuar a formação, mais e mais informações são necessárias, Luizinho gostaria de ser especialista em Urologia.

Mais cinco longos anos o esperavam. Antes de aprender a fazer o tão temido exame por muitos relegado, mas de vital importância ao porvir do mais idoso, deveria passar por cirurgia geral. Seriam dois anos de aprendizado. Já que o corpo humano é por demais complicado. Composto por cabeça tronco e membros. Unissonamente ligados.

Doutor Luizinho ainda se recorda das horas insones. Quando dava plantão num hospital de pronto atendimento. Em plena madrugada chegavam acidentados. Pessoas que traziam a vida por um fio. Nestas circunstâncias, de suma gravidade, o neófito doutor gostaria de chamar um médico em seu auxílio. Mas, na maior parte das vezes ele mesmo tinha de por em prática todo o aprendizado. Pois o médico especialista não estava no hospital. E graças ao seu bom senso, ao seu jeito tranquilo de tratar as pessoas, o novato doutor se dava bem.

Assim que se graduou em cirurgia geral mais três anos o esperavam. A Urologia é uma especialidade cirúrgica, sujeita a muitas complicações, complexas como o cálculo renal, o câncer de próstata, as doenças inerentes ao sexo, as patologias da área genital, até mesmo as inadequações sexuais.

Mas este era o caminho que o jovem doutor sonhava desde os bancos escolares.

Quando jovem, recém-emerso da residência, o especialista era considerado intervencionista demais.

Não via a hora de extrair do ureter as pequeninas pedras que um dia sairiam espontaneamente.  O que seria melhor para o paciente. E o doutor, ainda inexperiente, metia os pés pelas mãos. Fazendo operações desnecessárias. Que deixavam marcas pelo corpo do enfermo através de incisões enormes.

Quando o paciente sofria com a saída da urina, por culpa de uma próstata pequena, passível de tratamento clínico, eis que o doutor Luizinho, em começo de carreira, decidia operar o doente. Muitas vezes o resultado não era aquele que se previa. E os sintomas voltavam depois de poucos anos.

Passaram-se os dias, que se alongaram em anos. O jovem doutor, depois de tantos insucessos, aprendeu que a medicina não é aquela que se aprende na escola. Por certo que os ensinamentos aprendidos antes, depois de uma residência bem feita, são importantes para uma boa formação profissional. O médico não deve deixar os livros descansarem na estante. Vital se faz frequentar congressos na especialidade. Da mesma forma que ouvir opiniões dos mais experientes faz parte da vida de qualquer profissional, seja ele na saúde ou em outros caminhos afins.

Aos mais de sessenta anos tudo mudou na carreira do não mais jovem doutor. Ele aprendeu que nem todo cálculo renal deve ser operado. Quem nem toda próstata crescida deve ser tratada numa mesa de operação. Que antes de tudo deve ser tratado o paciente. Não a doença que ele traz.

Um dia, durante um atendimento numa unidade de saúde pública, entrou sala adentro um paciente geriátrico. O velhinho adentrou à sala numa maca. Acompanhado de dois filhos maiores.

O doente foi encaminhado de um postinho de saúde com o exame indicativo de câncer de próstata muito aumentado. O PSA acusava níveis altíssimos. Mas o pobre idoso mal conseguia andar. Muito fragilizado com seu estado quase terminal.

Depois de examinar o pobre enfermo, de escutar-lhe os pulmões, de medir-lhe a pressão, através do toque retal não havia dúvidas de que seria um câncer de próstata. Já bem avançado. Foi quando o bom senso assoprou-lhe a consciência. Por que indicar uma biópsia da próstata? Se o tal procedimento invasivo faria sofrer ainda mais o pobre velhinho?

Depois de explicar à família todas os descaminhos que a doença traz, de pacienciosamente confortar os familiares, enfim dali saíram pessoas agradecidas. O portador de câncer de próstata, naquele estado, certamente iria morrer por outras causas.

Agora Doutor Luizinho, na plenitude da sua experiência, foi chamado, pelos seus residentes, de doutor Bom Senso.

E os jovens doutores acabaram aprendendo que sem o inestimável bom senso não se vai a lugar nenhum. Ainda bem que a vida me ensinou a proceder assim.

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