Mudar pra quê?

Aquela manhã anunciou-se fria e ventosa como no mês de setembro se acostuma.

Um vento fresco, seco, varria as folhas mortas pelo chão poeirento.

Um solzinho sem graça punha a carinha amarela de fora. Nenhuminha nuvem misturava-se a azulice de céu.

Chuva que é bom nem sinal. Tomara ela caísse ao final do mês. Outubro era tempo de plantio. De sulcar a terra, de espalhar esterco, para depois que o céu mudasse a cor ali semear sementinhas de milho, para depois nascerem os pezinhos de milho, logo iriam crescer, espigas graúdas mostrarem-se vaidosas, para dar sustento à vacada que naquela entressafra mostravam costelas à vista.

Mas não choveu a contento. A chuva atrasou. A roça de milho não vingou.

O prejuízo foi gordo. Não tanto quanto o capado obeso que grunhia no chiqueiro, à espera da ração do dia.

Zé Leiteiro, acostumado às vicissitudes do tempo, fumando um paiero apagado, assentado nos calcanhares, sofismava a sua moda: “não tem importância. O ano que vem vai melhorar”.

Pena que no ano vindouro acontecia tudo de novo. A chuva não vinha. O preço do leite não convinha. A ração subia às alturas. Mais alto que os pés de milho, nos tempos de vacas gordas.

Naquele ano maldito o infeliz mas resignado Zé quase perdeu tudo que tinha.

Ele fez um empréstimo ao banco. Quando venceram as promissórias, cadê o dinheiro para pagar ao banco? Já que a renda do leite despencou, a roça de milho não deu coisa que prestasse, não havia como o pobre homem da roça pagar as duplicatas.

Um dia foi chamado pelo gerente do banco perdulário. Assentado a uma cadeira almofadada, depois de esperar horas e horas, foi informado que, caso não pagasse a dívida, sua terra seria penhorada. E um mês depois perderia tudo aquilo que tanto amava.

Zé voltou à roça cabisbaixo.

Como fazer para sair daquela situação aflitiva? A sua rocinha querida era tudo que tinha. Caso a perdesse seria a danação de sua vida.

Naquela noite escura passou em claro. Lá fora uma coruja amiga saía à caça. Rodopiava por sobre um cupim seu pescoço curto.

Acordou sem ter dormido. Passou uma água fria naquele rosto remelento. Tomou um café requentado. E foi ao curral ordenhar a vacada.

Com a ordenhadeira estragada teve de tirar leite nos oito dedos. Mas o fez sem pestanejar.

A dívida com o banco venceria de hoje a um mês. Como fazer para pagar a hipoteca? Suas economias eram insuficientes para comprar mantimentos. O que diria juntar mais dinheiro, já que o que o guardava dentro do colchão de palha era nada mais ou menos que mil reais.

Mesmo assim Zé leiteiro continuou na lida. Não sabia fazer outra coisa senão aquela. E como amava sua profissão.

Caso o tirassem da roça não sei o que seria dele. Mais um desabrigado na cidade, sem ocupação.

Dois meses se passaram. O banco ameaçava tomar as terras do Zé.

Por pura sorte, naquele final de ano infeliz, uma boa notícia fez alegrar os olhos baços do pobre Zé.  Ele havia herdado um dinheiro gordo. De um tio torto que faleceu no mês de novembro morto.

Com aquela grana inesperada saldou a dívida bancária. De novo passou a dono daquele palmo de chão, esquecido por tudo e por todos. Menos por ele. O valente e estoico homem do campo. A quem devemos muito, e não o valorizamos a contento.

No ano próximo tudo de novo sucedeu. As chuvas tão esperadas não deram o ar da desgraça. A roça de milho se perdeu. A vacada emagreceu. A porcada não deu preço. Ao revés dos altos preços da ração. E dos baixos preços pagos ao leite na entressafra.

Foi no derradeiro final de semana que fui fazer uma visita ao Zé Leiteiro.

Era uma manhã bem cedo. Antes das cinco.

Encontrei-o na lida de sempre. Disposto, já acordado há meia hora.

Dentro de casa ele não estava. E tudo estava arrumadinho. Muito mais que muitas casas na cidade.

Fui ao curral atrás do Zé. Assentado aquele banquinho tosco ele acabara de ordenhar as vacas. Animado, de humor.

Durante alguns minutos entabulamos uma prosa boa. Perguntei se ele era feliz. Ele me respondeu que sim.

Sabedor da situação de penúria que os homens do campo passavam, fiz-lhe uma proposta.

“Quer mudar de vida? Vá pra cidade. Aqui na roça não tem futuro. Mude de vida amigo Zé!”

Ele me olhou com o rabo dos olhos. Mostrando dentro deles uma felicidade imensa. Com um sorriso de orelha a orelha me respondeu, numa fração de segundos: “mudar pra quê? Aqui sou feliz. Muito mais que vosmecê”.

Deixei aquele lugar pensando na vida. Se Zé Leiteiro é feliz na sua simplicidade singela, por que mudar. Devo mudar eu. Quem sabe mudando de vida serei feliz. Muito mais do que sou. Talvez.

 

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