Não sei se seria capaz

Dentro das minhas limitações imensas ainda posso fazer tantas coisas.

Caminhar, correr de vez em quando, nadar quando as águas da piscina me atraem, escrever todas as manhãs, enxergar a vida com cores alegres, ter tirocínio suficiente para discernir o que me dá prazer, e o que não me dá procuro afastar, sonhar, pensar, amar, instantes de raiva são breves, e, sobretudo, na profissão que escolhi, saber indicar o que é melhor para o paciente e aquilo com o que ele não deve se preocupar.

Só a experiência dos anos me ensinou. Acredito, quem sou eu para julgar, com o passar do tempo aprendi a gostar ainda mais de mim. Agora sou mais cauteloso, mais afável ao trato, mais simpático àqueles que tentam se aproximar do que sou.

Ainda, por quanto tempo mais, melhor que não saiba, serei capaz de acompanhar meus netos em suas traquinagens. Como é bom vê-los crescer. Não tanto. Melhor se eles ficassem do tamainho certo para que os possa abraçar, tomar no colo, acarinhá-los, e ver aqueles sorrisinhos inocentes brotarem dos seus lábios quando deles me aproximar.

Ainda sou capaz de amar mesmo a quem não me corresponda. Sou capaz de perdoar a quem me ofendeu.

Ao ver aquele casal, tão amigo, tão amistoso, sempre os vejo pelas ruas, um ao lado do outro, o marido levando a companheira pelas mãos, foi que pensei até quando serei capaz.

Ainda bem que a saúde tem me acompanhado até quando. Felizmente não sei.

Sou hígido como o cerne daquela amoreira vetusta que nasceu há muitos anos perto da casa da minha roça. Sou ciente da capacidade de cuidar de mim. Ainda sou capaz de escolher aquilo que me apetece. Estou cônscio da minha reponsabilidade como médico que elegi há mais de quarenta anos atrás.

Mas, nem tudo caminha como nossos desejos. Amanhã, quem sabe quando, poderei caminhar, acordar cedo, escrever antes que os pacientes apareçam, voltar a casa antes do meio dia, voltar ao trabalho com a mesma disposição de antes, malhar na mesma academia que tanto me faz bem, e dormir a noite antes do nascer de um novo dia.

Meu pai assim procedeu até antes dos setenta e seis anos. Depois uma pertinaz enfermidade dele se apossou. Levou-o a cama. Em pouco mais de um ano a morte veio lhe buscar. Embora sentindo muito a sua partida um sentimento de alivio tomou conta da minha família. O sofrimento que meu pai passava ninguém o merecia.

Este mesmo casal, com quem me encontro sempre, sorrindo, pilheriando com a gente, é o exemplo de amor verdadeiro.

Ele é o cuidador de sua mulher. O esteio, seu único alento.

Ela me olha com olhares vazios. Quase não fala. Permanece em silêncio enquanto seu esposo fala por ela.

Enquanto ele caminha ela se deixa levar por ele. Enquanto ele sorri ela continua a olhar para a vida com olhos inexpressivos.

Como admiro aquele senhor. Seu cuidado para com sua esposa. Seu carinho destinado apenas a ela.

Num dia destes cruzamo-nos num supermercado. Nas ruas da cidade sempre passamos um ao lado do outro.

Meu amigo, de longa data, cuida da sua esposa como se fossem recém-casados. Com a mesma dedicação de antes. Com o mesmo amor como se fossem jovens enamorados.

Acredito, sem querer faltar com a discrição, que aquela senhora simpática padece da mesma doença que levou meu pai a morte.

Mas ele cuida dela como se nada acontecesse. Para aquele amigo a esposa ainda tem os mesmos encantos de quando jovem.

Felizmente tenho uma mulher a qual admiro cada vez mais. Valente, guerreira, mesmo não tendo a vitalidade de outrora ela vai ao trabalho a mesma hora que eu. Só volta a casa mais tarde. Quando a noite escurece. Quando as estrelas se mostram.

Ainda temos saúde. Eu e minha Rosa.

E quando as doenças aparecerem? E quando ela ficar como aquela senhora do meu amigo?

Serei capaz de cuidar da minha mulher com o mesmo desvelo daquela pessoa simpática com quem me cruzo sempre?

Terei a mesma paciência, que se chama amor, a qual admirei, naquele dia no supermercado?

Tomara a tenha. Pois não sei quem irá perder a consciência em primeiro lugar. Se eu ou ela. Quem de nós dois vai precisar ser levado pelas mãos. Ser tratado com tanta dignidade.

Tomara seja capaz de enfrentar as dificuldades que o futuro me trará. Com a mesma galhardia daquele amigo chegado.

A dedicação e o carinho que aquele senhor, já grisalho, trata a sua esposa, é o verdadeiro atestado de um amor de verdade.

Deixe uma resposta