Zé Antonho e a brisa fresca da primavera

Sempre o via, ao cair da tarde, no despertar madrugada, assentado àquele banco de pedra improvisado, uma grande laje granítica, a frente da casinha onde mora com a família, reduzida a um filho cego, a esposa há muito passada da idade, e outra filha enviuvada há tempos, noutra casa ao fundo, e, junto aos seus cachorros pouco amistosos, com os quais não se brinca quando se tenta entrar sem ser convidado.

Zé Antonho, é assim mesmo que se escreve seu nome, talvez, na hora do batismo seu pai tenha se esquecido da grafia exata e cometeu um senãozinho qualquer, por falta de instrução, pois todos nasceram na roça, e nunca tiveram tempo para cursar qualquer curso que não fosse aquele que a natureza ensina.

Aquele senhor de humor acima da média, sempre que cruzo com ele trocamos um dedo de prosa.

“Zé, hoje vai chover? Já não tá na hora de dormir”?

E olha que o relógio indicava menos das seis da tarde. Zé Antonho dorme antes das galinhas. E acorda junto ao cantar do galo. Pois, aos quase oitenta anos, bem contados, deve ser mais, não há quem, naquelas bandas, consiga fazer tudo que ele faz. Mãos caludas, tez tostada pelo sol, na face sulcos profundos testemunham o quanto ele viveu.

Conheço o afável Zé desde quando comprei uma propriedade vizinha a sua. Isso há mais de trinta anos, ou seriam menos.

Não é sempre que nos encontramos. Passamos meses sem nos vermos. Sinto uma saudade

imensa quando nossos olhos não se cruzam. Pois Zé é um amigo de verdade.

Um dia destes, ao cair da tarde, ou seria o começo de um novo dia, encontrei o Zé Antonho cabisbaixo. Não pilheriou comigo como de costume. Nem mesmo acedeu ao meu aceno de mão.

Era começo de primavera. As flores dos ipês caiam sem estardalhaço.  A pastaria ressequida indicava que a chuva estava longe. Setembro, ao seu final, mostrava um começo de primavera seco. A boa gente da roça torcia para que o tempo mudasse. Afinal era tempo de arar a terra, plantar sementinhas de milho, para meses depois colher o fruto do trabalho rotineiro.

Pensei, com meus pensamentos em efervescência que talvez a tristeza do amigo Zé fosse devido a este contratempo.

Mas, depois fui informado que o problema seria outro. De maior gravidade.

Um vizinho de pasto pediu segredo. Zé caiu enfermo. Naquela idade maior um médico da cidade vizinha havia diagnosticado um câncer na próstata. Em estado já avançado.

E pouco se poderia fazer. Já que a doença havia espalhado por todo corpo.

Passamos tempos sem nos vermos.

Zé desapareceu daquela laje de pedra dura onde sempre o via. O que estaria acontecendo com ele? Indaguei aos meus pensamentos.

A primavera cedeu lugar ao verão. Um ano inteiro sumiu-me dos olhos.

Foi nesta estação, rica em beleza e cores, da mesma forma prenúncio de dias melhores, quem não admira a primavera, ao passar perto da casa do amigo ausente, não o vendo assentado defronte à porteira, fiz menção de entrar em sua casa.

Quem me recebeu com dentes a mostra foram seu cães latindo estrepitosamente.

Recuei. Bati palmas. Até que seu filho cego apertou-me a mão amistosamente.

Pedi notícias do amigo Zé. Fiz-lhe ver o quanto sentia a sua ausência. Considerava o pai um amigo velho. E quanto ele me alegrava durante longos anos.

Claudio, olhando sem me enxergar, não conseguiu impedir duas lágrimas de se desprenderem pelo canto dos olhos baços.

“Doutor Paulo. Meu pai se despediu da gente na última primavera. Assentado aquela mesma laje de pedra. Onde o senhor sempre o via, ao passar por aqui.”

Entrei porta adentro para cumprimentar a família. Hipotequei-lhes minhas condolências. Todo o meu pesar.

Deixei a casa do amigo Zé Antonho sentindo uma brisa fresca a assoprar-me o peito. Era primavera. Ao lado dela uma saudade imensa. Das nossas prosas boas. Da pureza buliçosa do amigo velho. Dos nossos encontros furtivos. Da sua pessoa querida por todos que o conheceram.

Na próxima primavera Zé não mais estará aqui. Nem ao menos noutros verões.

Aquela brisa fresca sentida no sábado passado de repente se transformou numa chuvadonha danada. Talvez a mando do querido Zé. Que olha de onde estiver abençoando a todos nós. Com sua prosa boa. Com a sua imensa capacidade de amar a quem for.

Hoje, vinte e quatro de setembro, neste dia iluminado pelo sol, ainda penso no amigo Zé. Não vou vê-lo de novo. Talvez mais tarde, quando me juntar a ele noutro lugar ainda melhor.

 

 

 

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