“Mãe! Existe vida depois da vida?”

Aninha sempre lhe assaltou os sonhos a vida depois desta que vivemos.

Era uma meninazinha inteligente, dedicada aos estudos, que morava na roça junto a mãe que tanto amava.

O pai, sempre ausente, nascido ali mesmo, naquele lugar ermo e distante de tudo e de todos, quando aparecia era para causar incômodo a pobre família da qual nunca fez parte de corpo e alma.

Pedro bebia além da conta. Sempre enfiado num boteco perto da porteira onde moravam.

Quantas vezes Aninha tinha de amparar o pai quando ele vinha trocando as pernas, com aquele hálito de tirar cascavel do sério, fazê-la vibrar o guizo anunciando o bote, prestes a picar o incauto e nele injetar sua peçonha, por vezes fatal.

A meninazinha quase se acostumava às agruras daquela vidinha singela. Não fosse pela presença da mãe, uma senhora boa, sempre pronta a ajudar os amigos, valente como a seriema quando ameaçam sua parceira sempre em carreira pelos campos, mãe dedicada, a qual dava conta de fazer todos os serviços daquela rocinha miúda, ajudada apenas pela filha.
Antes que o relógio apontasse cinco da manhã acordavam as duas. Era               Aninha quem fazia o café. Uma rosquinha feita na noite passada era a única coisa que as duas saboreavam. Pois na roça pão era uma iguaria rara.

Antes das seis lá estavam elas na porta do curral. Uma dúzia de vacas baldeiras, todas com o úbere vazando leite, já estavam prontas a ordenha. Os bezerrinhos apartados na tarde de ontem esperavam famintos sua vez de nas tetas enfiarem o focinho.

Aninha e a mãe davam conta de todas as tarefas matutinas. O pai, quando aparecia era para causar desgosto. Por vezes, e não eram poucas, depois de reclamar da renda do leite, costumava criar caso com o motorista do caminhão leiteiro, que sempre ameaçava não voltar noutro dia.

As duas se acostumavam com a vida que levavam. Não reclamavam de nada. Mesmo quando a chuva faltava. A pastaria secava. E alguma vaca desavisada atolava no brejo. Ficando apenas a cabeça de fora.

A mãe de Aninha se chamava Manuela. Devia ter sido linda num passado distante. Ainda conservava nos traços claros toda a beleza perdida num passado não tão remoto.

Naquele verão quente, de pouca chuva, Manuela contava com menos de quarenta anos de vida. Vida dura, toda ela dedicada a filha, única, já que o pai de Aninha havia feito vasectomia logo a seguir ao nascimento da adorável criança.

Um dia veio uma notícia nada boa.

Um vizinho de pasto encontrou o marido de Manuela caído numa curva do caminho, sem nenhum sinal de vida. Devia ter sido um infarto súbito. Pedro, além da bebida tinha pressão alta. E não se cuidava tanto quanto adorava cachaça.

Naquela tarde noite o pobre foi sepultado. Num cemiteriozinho pertinho da igrejinha de um povoado fincado no alto do morro. Compareceram ao funeral apenas alguns amigos chegados. O padre fez uma breve oração. A qual ouviu atenta a adorável Aninha.

Intrigada com a morte, a inocente criança jamais havia visto um defunto na sua breve existência, naquela noite Aninha sonhou com o céu.

Ela sempre admirava as estrelinhas miúdas brilharem no firmamento. De quando em vez um vagalumezinho, seu amigo, pousava em sua mãozinha miúda, ali ficava alguns instantes e logo desaparecia na escuridão da noite.

Desde a morte do pai tanto Aninha quanto Manuela nunca mais se esqueceram daquele dia fatídico. Embora o pai não fosse um exemplo a ser seguido era a única pessoa com quem Manuela dividiu a cama. E fora ele que o grande responsável pela vida de Aninha.

Desde então adorável criança passou a pensar na morte. O céu, como seria ele, quem morava lá, seria exclusividade dos humanos?

Pensamentos povoavam a cabecinha da linda menina. Mais ainda depois da morte do pai.

Foi numa madrugada cedo, quando estrelas ainda enfeitavam a via láctea, assim que Manuela e a filha foram ao curral, notaram a falta da melhor vaca do reduzido plantel.

Cabrita, prestes a se tonar mãe, em segunda cria, não apareceu junto as outras. Receosas do que teria acontecido a mãe faltosa mãe e filha foram logo a sua procura.

Reviraram pastos, sempre olhos atentos, procuram em locais os mais imprevisíveis, até que, depois de quase meio dia de busca, depararam-se com uma cena insólita.

A vaca Cabrita havia expelido a cria num matinho beira lago. Tanto a mãe, quanto a linda bezerrota, não suportaram o parto complicado. Ambas sucumbiram ao sofrimento. Foi uma cena triste com a qual se depararam.

Foi a segunda vez que Aninha confrontou-se com a realidade da morte. Mais uma vez pensou como seria o céu.

Naquela noite Aninha não conseguiu fechar os olhos. Passou a noite em claro. Apesar da escuridão da noite.

Na manhã seguinte caiu uma aguaceira danada na roça da meninazinha preocupada com o destino de cada um de nós. A imensidão do firmamento, a cinzentice do céu, que se mostrava naquele dia, enchia-lhe a cabecinha de pensamentos incomuns.

Durante a noite, ainda cheia de dúvidas, Aninha dormiu ao lado da mãe. Ou melhor, quase conseguiu cair no sono.

Daí nasceram estas indagações: “mãe. Pra onde vamos nós, depois que morremos? Quem mora no céu? Para lá apenas vão os humanos? E os bichos? Eles também têm direito a viver no céu”?

Manuela, tentado elucidar as dúvidas da filha, como não sabia todas as respostas, acabou por consolar a criança com esta tirada nascida no fundo do seu amor de mãe: “não se apoquente querida. Tudo tem seu tempo certo. Para nascer. Para morrer. Para ser feliz. Cada um nasce com seu destino traçado. Quando você, minha querida, partir desta vida, com certeza vai se encontrar com todos que lhe quiseram bem. A vaca Cabrita vai estar lhe esperando feliz da vida. Com sua linda bezerrinha já quase vaca adulta. Com seu pai redimido. Comigo mesmo. Ao nosso lado uma pessoa especial vai nos ensinar o que se passa depois da morte. Não tenha pressa. Um dia ela chega.”

Desde então nunca mais Aninha pensou na morte. Encarou-a com a mesma naturalidade com que se encara a vida.

Deixe uma resposta