As duas Marias

Hoje amanheceu um dia extremamente agradável.

Fresco, sem o frio invernal, céu cinzento, uma chuvinha mansa caía em gotas fininhas.

Trata-se da primavera. Outubro em seu começo.

Logo mais penso que a chuva vai voltar com mais intensidade. Talvez precise lançar mão do meu guarda-chuva recostado à parede. Pois sempre me desloco graças às pernas. Andarilhas que são.

Logo mais, perto das dez da manhã, de aqui, do meu consultório, vou caminhando até um postinho de saúde simpático, onde me esperam pacientes de todos os tipos.

Um deles sempre me visita. Acredito, se a memória não me atraiçoa, seu nome é Maria do Rosário. Ou das Graças. Sua irmã tem quase o mesmo nome dela. Ambas são Marias.

Como são simpáticas as duas Marias.

Embora a doença delas tomasse conta mesmo assim as duas aparecem sorridentes quando adentram à minha sala modesta.

A primeira Maria, acredito que a mais longeva, tem se ausentado das consultas. A outra Maria é a que vem pedindo receitas de tarja preta, ou algum remedinho para amenizar as dores que são muitas.

Ignoro quanto tempo Maria do Rosário não aparece naquela unidade de saúde. Tenho sentido-lhe a falta.

As duas Marias são pessoas do melhor quilate. Pena que as doenças não lhes têm dado trégua.

Não sei a idade exata das duas Marias. Talvez mais do que os anos que me assediam.

A aparência que a primeira Maria mostra é de mais ou menos setenta anos de idade.

Um cadinho mais, ou seria menos.

A última vez em que vi uma das Marias, depois de prescrever-lhe a receita, fui informado o segundo motivo da consulta. Ela estava tentando se aposentar. Não pela idade. E sim pelas enfermidades com as quais lutava desde quando a conheci.

Na mesma hora fiz a ela um atestado de incapacidade. Eram tantas as doenças, todas merecedoras de afastamento, que acabei por preencher duas folhas brancas. Nelas constava não apenas as doenças, com os medicamentos que ela tomava.

Faz um ano que não vejo a dona Maria do Rosário naquele postinho de saúde pra onde vou de agora a pouco. Nem ao menos a sua irmã, de cujo nome não me lembro exatamente.

Tomara que nada de grave tenha acontecido a ela. Talvez, torço para isso, as doenças tenham lhe dado descanso. E com ela a tal felicidade chegue finalmente.

Já hoje, nesta terça-feira, outubro começo de primavera, ao passar pelo local onde as pessoas esperam a tão sonhada aposentadoria, quem estava no primeiro lugar da fila?

Minha amiga a paciente do postinho de saúde. A simpática dona Maria do Rosário.

Uma das irmãs ausentes. Com as quais me encontrava sempre, naquela simpática unidade de saúde pública.

Parei um cadinho para saber notícias dela. Não apenas da Maria presente, assim como de sua irmã.

Trocamos um dedo de prosa amistosa. Fiz-lhe saber do quanto a estimava. Como apreciava quando ela vinha à consulta.

E a segunda irmã? Ela estaria bem? Ou teria sido implacavelmente colhida de frente pelo camburão da morte?

Dona Maria do Rosário demonstrou todo apreço que sentia por mim. Apertou-me efusivamente as mãos. Olhou-me profundamente nos olhos.

“Doutor Paulo. Graças ao seu atestado estou prestes a conseguir a tão sonhada aposentadoria. As doenças, que o senhor conhece tão bem, pioraram de tempos pra cá. Quase não consigo caminhar. Um vizinho amigo me trouxe até aqui. Com o salário minguado que tanto eu como minha irmã percebemos quase não da para comprar remédios. As outras necessidades ficam em segundo plano”.

Como tinha certa pressa para chegar ao meu destino final, desejei a ela boa sorte. Que tanto ela como sua irmã consigam passar dias melhores. E que a aposentadoria seja conquistada, pois elas merecem. Afinal lutaram a vida inteira. Agora que o tão sonhado descanso venha antes que uma voz vinda do alto as reclame.

Tomara que as duas irmãs consigam a tão sonhada aposentadoria. E vivam o resto de vida em paz consigo mesmas.

Logo mais tenho de ir a ao tal postinho de saúde. Ali não encontrarei nenhuma das Marias. Espero, desejo de coração aberto, que as duas Marias tenham consigo o tão sonhado intento.

Antes que seja tarde demais. E se aposentem no céu cinzento que daqui se deixa ver.

Tanto a primeira Maria, quanto a sua irmã, gente da prateleira de cima, são uma das tantas que engrossam as filas imensas, esperando o tão sonhado dia do merecido descanso. Pena que para muitos ele vem tarde demais. Tomara não seja o caso de uma das duas Marias.

 

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