No afã de continuar vivendo…

Chico sempre foi um sujeito que amava a vida com toda força da sua grandeza.

Estoico, fervoroso leitor da Bíblia, tinha pelo livro santo a maior estima.

Ele nasceu na roça. Ali sempre viveu até a maior idade. Só que, uma vez chegado aos quase cinquenta anos dele se apoderou uma tinhosa enfermidade.

O não tão velho Chico não tinha como cuidar da pequena propriedade. Desde quando a esposa morreu só restou ele além das saudades.

E as tarefas para quem entende das lidas rurais são um fardo por demais pesado para qualquer ombro por mais forte que seja.

De repente Chico sentiu-se alquebrado. Uma dor na coluna quase o impedia de caminhar. Além da visão que mais e mais claudicava, quase o impedindo de enxergar aquelas letrinhas com as quais tinha tanta intimidade. A leitura a Bíblia foi relegada a um segundo plano.

No entanto a fé nunca o abandonou.

De repente, naquela primavera chuvosa, chuva na roça é uma benção, quando demais se torna um estorvo, difícil trabalhar a terra, ali semear, ou até mesmo, devido às estradas enlameadas, levar o leite ao alto do morro, uma ideia assaltou a mente do velho Chico. Ele deveria passar adiante a velha propriedade. Como não tinha descendentes quem cuidaria daquele pedaço de chão que dava tanto trabalho? Foi então que decidiu vender seu chão de tantas histórias para contar.

Ali passou a meninice. Viu a mocidade esparramar-se em anos. Até aqueles cinquenta anos nunca se imaginaria longe daquele lugar encantado.

Acordou bem cedo, como de costume, naquele mês de outubro, com uma estranha sensação de abandono.

Fez as malas. Ali amontoou algumas peças de roupas. Perto delas uma fatia do seu sentido coração.

Foi à cidade na primeira condução que passou por ali. Por sorte o velho caminhão leiteiro ofereceu-lhe carona. E lá se foi o Chico enfiado na boleia, junto a outros que com ele iriam à cidade comprar mantimentos.

Duas horas depois chegou ao destino final. Tinha consulta marcada com um médico especialista em doenças degenerativas. Talvez ele conseguisse aliviar as dores imensas que sentia na coluna. Com muita esperança aguardou a sua hora de ser atendido.

Foi quando o médico lhe deu o veredicto. Chico sofria de uma doença de nome complicado. Uma tal de Guillain Barré. Que em pouco tempo iria à cama. Ficaria privado de respirar. Seu destino final seria trágico. Jogado a uma cadeira de roda, inválido, dependente de cuidadores.

Chico saiu da consulta pensando na morte. Não se deu por vencido. Procurou outro médico.

Mais uma vez confirmou-se o diagnóstico. Exames complexos apontaram a mesma patologia.

O que fazer frente a esta situação? Esperar a morte chegar? Entregar-se ao inexorável?

Mas não era esta a atitude do pertinaz Chico. Ele sempre foi um homem dedicado aos ensinamentos da Bíblia. Tinha por ela uma verdadeira adoração.

Mesmo com a visão debilitada Chico conseguiu ir adiante na leitura.

Inspirado nela, pensando em Deus Pai, Chico, movido pela fé inquebrantável, foi pra casa pensando no porvir.

A tal doença não seria capaz de interromper a alegria de viver que Chico possuía. Ele jamais se deixaria curvar frente a uma doença deveras consumptiva.

Três meses depois os sintomas já tomavam conta do corpo do pobre paciente. Seu andar foi claudicando, sua fala mal saía dos lábios, uma fraqueza progressiva o impedia de caminhar.

Em pouco mais de seis meses Chico foi jogado a um cadeira de rodas. O ar lhe faltava. Foi preciso perfurar-lhe a traqueia para que o ar entrasse pelos pulmões.

Mesmo assim Chico não desanimou. Procurou recursos em outro centro médico mais avançado. Debaldes foram as tentativas. Chico ia de mal a pior.

Vivendo solitário, num quarto de hotel, Chico voltou à roça. Por sorte ela não foi vendida. Não apareceram interessados.

Ali chegando, movendo-se com extrema dificuldade, quase incapaz de atender às próprias necessidades, mesmo assim Chico não perdeu a fleuma.

Ainda viveu por muitos anos. Quem o conheceu de perto, como eu, poderia dizer que ele morreu feliz.

Chico nos deixa uma lição de vida. Mesmo ao sabor dos maiores percalços continue a lutar. Mesmo que seja uma luta inglória. Como a que levou Chico embora.

No afã de continuar a viver tudo vale a pena. Já dizia o grande poeta português, Fernando Pessoa, desde que a alma não se apequene.

 

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