Viagem sem volta

Aquele senhor, trabalhador, que sempre dedicou sua vida ao mourejar constante, nunca teve tempo de viajar senão a Aparecida do Norte.

Ali foi em romaria. Deixou a rocinha querida nas mãos de Deus. Não tinha como pagar ajudante. Alguém que o substituísse na lida da roça. Nas incontáveis tarefas das quais nunca se afastou.

Antenor acordava ao nascer da aurora. O relógio mal apontava quatro da madrugada quando ele abria os olhos. Dormia antes do empoleirar das galinhas. Era um sono pesado, profundo, que até o impedia de sonhar. Era um homem solitário. Não se casou por falta de pretendente. Algumas mulheres de vez em quando apareciam nas suas terras. Mas nenhuma delas fazia seu coração bater descompassado.

Aos quarenta anos, já com o corpo alquebrado, cansado das lidas no campo, como não podia diminuir a intensidade dos compromissos inadiáveis Antenor precisava procurar um médico. Mas como deixar as vacas à espera da primeira ordenha do dia? E como alimentá-las depois do leite ir ao laticínio? Quem iria carpir a roça de milho? E a porcada, sempre faminta, o que fazer para tratar de tanto bicho?

Desta maneira o estoico homem do campo tinha de adiar a visita ao médico. Sine die. Uma vez chegado aos sessenta uma incômoda dificuldade de urinar surgiu em sua vida sempre atarefada.

Numa manhã, bem cedo, era antes das quatro e meia, Antenor se viu em grandes dificuldades. A urina não saiu como deveria. A bexiga ameaçava estourar. Como a cidade perto estava a uns míseros dez quilômetros, não restou outra alternativa senão ir de carona no velho caminhão leiteiro. Ali chegou desesperado. Fazia mais de vinte e quatro horas que o velho Antenor não urinava. O suor descia pela sua face em bicas. Um sofrimento intenso se mostrava no semblante sempre afável do pobre Antenor.

Ao chegar ao modesto hospital, onde não havia médico, não restou outra coisa a fazer senão tentar passar uma sonda pela sua uretra da qual vazava urina. Uma dedicada enfermeira, acostumada às urgências que chegavam, conseguiu, depois de muito esforço, passar uma sonda fina até a sua bexiga prestes a estourar. Foi um alívio tão grande que o pobre paciente mal conseguiu sorrir de tanta felicidade. Era como se a melhor vaca do plantel tivesse parido uma linda bezerrinha. Ou até mesmo o leite tivesse aumentado de preço.

Antenor deixou o hospital usando aquele artifício que o permitia esvaziar a bexiga. Mas logo deveria procurar outro centro especializado. Para se livrar de vez da próstata que entupia a uretra do pobre Antenor.

A consulta foi marcada para dali a dois meses. Naquela localidade não havia urologista. E o pobre paciente não lhe restava senão uma longa espera.

Mesmo assim Antenor, sofrendo toda a sorte de percalços, aguardou pacienciosamente o dia da tão sonhada consulta com o especialista. Chegou cedo à unidade de saúde. Era o undécimo da fila de espera. Ainda com a sonda fina passada naquele dia, o infeliz Antenor foi informado que o urologista teve de sair às pressas para uma cirurgia de urgência. E sua consulta mais uma vez foi adiada. Sem saber para quando.

Mais dois meses se passaram. Antenor, já desgastado pelo sofrimento, exibia na face exausta uma apatia sem limite. Descorado, anemiado, sinais de infecção alastravam-se pelo seu corpo inteiro. Uma febre de etiologia inexplicada o fazia delirar. Sonhou, durante o delírio, que faria uma viagem linda por um país distante do seu torrão natal.

Feitas as malas, cheias das melhores roupas, trajes que nunca teve, o velho viajor exibiu o passaporte no check-in do avião, e partiu rumo ao desconhecido, certo que seria uma viagem maravilhosa, bem melhor do que aquela à Aparecida do Norte, de cuja lembrança nem se recordava mais.

Acontece que Antenor acordou do seu sonho devaneio.

A doença da próstata estava num estágio avançado. Era uma doença maligna. Um câncer de próstata já metastático invadiu ossos e outros órgãos ao derredor.

Antenor estava em estado terminal. Sem condições de ser operado baixou ao hospital.

Em poucos dias, já na unidade de tratamento intensivo, nas últimas, mais uma vez sonhou com uma derradeira viagem. Desta vez não foi um sonho. Foi uma cruel realidade.

Antenor foi sepultado num pequeno cemitério. Na sua localidade rurícola.

Quando foi à Aparecida do Norte voltou feliz num domingo do qual nunca mais vai se esquecer. Mas, daquela vez, foi uma viagem sem volta. A mesma que todos nós iremos fazer, mesmo contra a nossa vontade. É melhor deixar acontecer. Sem sofrer demasiadamente. Sem saber qual será a nossa hora. Um dia, quem sabe quando? Continuo preferindo ignorar quando vai ser.

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