Ao vê-lo dormir, renasci

Finados enseja morte. Lembranças, saudades, perdas.

E mais um dia de finados chega. Amanhã temos o costume de ir ao campo santo prantear os mortos. Muitos assim o fazem. Já outros, os quais não têm a quem prantear, preferem se ausentar daquele lugar enfeitado de flores, que logo murcham, e apenas oram pelas almas dos que partiram.

De vez em quando penso na morte. Dizem que talvez seja melhor pensar na vida. Mas as duas são aparentadas. Uma é o começo. Já a outra inevitavelmente é o fim.

A gente nasce. Sem saber o que nos espera. Vivemos tentando afugentar as doenças. Mas elas aparecem. Mais cedo ou mais tarde.

O mais previsível é que elas mostrem a cara quando a gente envelhece. Mas, de quando em quando elas veem sem se anunciarem. Numa hora em que a gente pensa que é imune às enfermidades.

Sempre pensei que a saúde nunca vai me abandonar. Mais um logro meu. Mais cedo ou mais tarde as doenças me pegam pelo corpo inteiro. Tornando-me mais um enfermo. Jogado a cama de um hospital qualquer.

Como médico tenho tentado combater as doenças. Por vezes saio vencedor. Mas, não sei a exata percentagem quando as tinhosas enfermidades me fazem jogar a toalha. E eu caio combalido a um canto do ringue, sem coragem de me levantar outra vez.

Hoje conto com quase setenta anos. De um viver confortável. Não me recordo quando fiquei impossibilitado de vir ao trabalho. Nunca precisei atestar-me qualquer enfermidade. Como de vez em quando tenho de proceder com algum paciente que me procura.

Espero continuar vida afora com a mesma saúde que agora desfruto. Telho colhido os frutos da vida espartana que tenho vivido. Não tenho vícios maiores. Como o de escrever a cada manhã. Pratico atividades físicas todos os dias. Espero continua assim enquanto viver.

Faço das pernas artefatos da busca de uma saúde eterna. Embora saiba que eternidade é fruto de mais um devaneio meu.

Amanhã é dia de prantear os mortos. Ontem comprei flores. Dois vasos de crisântemos que serão depositados sobre a lápide fria do mausoléu dos meus pais. Bem sei as flores durarão bem pouco. Mas, como foi bom tê-los ao meu lado durante a vida que passamos juntos lado a lado. Pena que tudo que é bom dura pouco. Este texto vai durar menos de meia hora. E logo vai estar concluído.

Ainda sobre o mesmo tema – morte e vida, de ontem para hoje tenho passado horas intermináveis na mesma casa onde dorme meu primeiro neto. O pequeno Theo conta hoje com dois anos e meio de vida. Como é prazeroso cuidar de netos. Talvez ainda melhor que cuidar dos filhos.

Deixei aquele apartamento ainda quase madrugada. Meu neto ainda dormia. Antes de sair dei uma passadinha rápida pelo quartinho onde o Theo dormia. Era como se um anjinho dormindo fizesse companhia o outro anjo. Não sei se anjos dormem. Da mesma forma ignoro se anjos falecem. Tenho para mim que eles cuidam da gente do outro lado da vida.

De vez em quando penso no dia que vou morrer. Como tantos deixaram de viver. Mas, como a morte é inevitável, vivo constantemente tentando afugentar maus pensamentos.

Amanhã é dia de se lembrar dos mortos. Sempre vou ao cemitério. Prantear os meus.

Mas, ao sair de casa, nesta manhã tão linda, que antecede o amanhã, dia de finados, dia dedicado aos mortos, ao ver o Theo dormindo nele penso renascer. Pode ser mais um delírio meu. Mas sem sonhar, sem devanear, talvez nem valha a pena viver.

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