Nem sempre

Hoje, oito de janeiro, acordei a hora de sempre.

O sol já se punha do lado de fora das nuvens. Nenhuminha nuvem se via no alto. O azul do céu era tão intenso que se podia ver as asas dos anjos. O calor já se manifestava com seu bafo abafado. Mais tarde seria impraticável correr ao sol.

Talvez por este motivo tenho evitado corridas longas pelas estradas como fazia antes. Prefiro a sombra das academias. O ar ventilado dos ventiladores. A piscina vem logo depois.

O verão anunciado deve ser quente e ensolarado. Quando a chuva retorna? Tomara ela não tarde muito. As roças de milho, a pastaria enverdecida carece de chuva, assim como eu preciso da inspiração para viver.

Agora mesmo o sol entra sem ser convidado pela minha janela. As persianas dentro em pouco precisam ser fechadas para que a claridade intensa não machuque as minhas retinas. Como elas são sensíveis à luz do sol. Aliás, tudo em mim cheira à sensibilidade.

Depois de mais velho quase tudo me leva às lágrimas. Compadeço-me daquele menino que dorme ao relento. Do velhinho desassistido pela sorte que tem de enfrentar longas filas para receber as migalhas de um beneficio risível, depois de longos anos de trabalho duro. Apiedo-me do pedinte que, de mãos estendidas, esmola à porta de um banco.

Talvez a idade avançada tenha mudado alguma coisa dentro de mim. Nem sempre foi assim.

Aprendi a apreciar a pessoa que me tornei.

Antes, quando aqui cheguei, depois de anos de estudos num país estranho, de volta a minha cidade, confesso. A vontade de vencer na profissão não me dava tempo de pensar nos outros. Apenas e tão somente operava. Ia de emprego a outro, com uma pressa que me consumia sempre. As minhas colegas de trabalho me consideravam uma pessoa diferente do que sou. Talvez pela sofreguidão da insegurança. Quem ainda não sentiu, dentro do peito, uma sensação estranha de não ser capaz de resolver tudo que lhe é posto a frente dos olhos? Eu era assim.

Somente os anos me tornaram menos ansioso. Agora sou capaz de domesticar a ansiedade que antes brotava no meu âmago. Enfrento as intempéries com menos desatino. Não me surpreendo com os fracassos. O sucesso não mais me sobe à cabeça. Tornei-me mais afável no trato.

Não mais evito o contato dos humildes. Pois aprendi, com a idade, que a humildade é uma virtude a ser buscada. Avidamente conquistada. Foi ela quem me ensinou a ser feliz. Dentro das minhas posses modestas me sinto tão bem como jamais me senti antes.

Nem sempre foi assim.

Antes era soberbo. Voluntarioso. Considerava-me a última bolacha do pacote. O rei da cocada preta.

Agora, passados tantos anos, arrisco-me a dizer que as pessoas, que antes me consideravam orgulhoso, dizem outra coisa de mim.

Mas nem sempre foi assim.

Os anos operam milagres dentro da gente.

Quando se tem um neto nos braços, a acarinhar-nos a face recheada de rugas, a calva que se mostra a luz do dia, tornamo-nos outra pessoa. Assim aconteceu comigo. Mas nem sempre foi assim.

A transformação milagrosa que os anos fazem com a gente é algo que não se deve esquecer. Nada contra os jovens. Mas como eu me sinto bem na idade que não escolhi. Mas ela apareceu sem ser convidada. E ela calhou tanto bem que quase não sinto o peso dos anos.

Agora faço quase tudo que fazia antes. Até melhor. Considero, dentro da minha gabolice de ancião avô.

Brinco com meu neto como se estivesse na mesma idade do meu querido Theo. Tenho fôlego de gato. Deixo que ele faça comigo de gato e sapato. E quando o vejo dormir sinto por dentro uma sensação doce de alento. Como se fosse um anjo dormindo.

Nem sempre foi assim.

Antes, quando me iniciei na profissão, o escritor ainda estava adormecido dentro das minhas entranhas.

Graças à sensibilidade, prerrogativa dos anos, a sensação de dever cumprido, a ambição refreada, agora me sinto mais feliz do que nos verdes anos. Não mais tenho pressa para alcançar meus objetivos. Agora é só manter a saúde em dia. Tudo tenho feito para não ficar a mercê de colegas. Mas nem sempre foi assim.

Não sei quanto tempo mais me resta de vida. Seriam anos? Quantos deles?

Somando os anos vividos, as horas contabilizadas, os minutos vencidos, impossível fazer a conta de quantos foram.

Agora, prestes a completar setenta anos, aprendi a ser feliz, a minha maneira.  E tento esparramar felicidade a todos ao derredor.

Antes era assaz preocupado com as posses. Com o ganhar dinheiro. Aprendi, com os anos, a me contentar com o que tenho. Pois a vida passa. O tempo é finito.

Pena que nem sempre foi assim.

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