A primeira vez que Mariazinha enxergou

Tudo eram trevas para aquela meninazinha nascida na roça.

Devido a um defeito congênito, herdado do pai, Mariazinha nasceu com a visão embaciada, que pouco a pouco se transformou em amaurose total.

Aos cinco anos a menina mal via a lua no seu despertar ao final da tarde, quase noite. Tateava na escuridão. Todos que a conheciam se compadeciam daquela menina, linda, de cabelos ruivos, qual e tal uma espiga de milho antes de embonecar.

Mas, ela não se entristecia por sua condição adquirida ainda ao nascer. Era feliz a sua maneira. E bem o sabia.

Frequentava a escola com razoável frequência. Era tida aluna acima da média. Apesar de ali, naquela escolinha rural, não ter alguém que lhe ensinasse a leitura pelo método Braille, pois todos enxergavam a vida como ela se mostrava ao natural.

Mariazinha cresceu. Linda como nasceu. Seu sorriso era admirado por todos que a conheciam naquela localidade distante da cidade. Aos dez anos foi levada, por um tio, para se consultar com um especialista. O oftalmologista comprovou-lhe a enfermidade como sendo incurável. A pequena Mariazinha permaneceria cega a vida inteira. Mas nem o diagnóstico de amaurose total fez perder o brilho nos olhos baços daquela menina linda. Sempre sorridente, pronta a servir quando convocada.

Aos quinze anos Mariazinha teve uma notícia auspiciosa na sua vidinha simplória. Os pais se mudariam para uma cidade grande. Acabaram por vender a propriedade por uma soma considerável. E com aquela importância enorme teriam uma vida de quase ricos na cidade grande.

Foi numa segunda-feira que a mudança se deu. Despediram-se dos vizinhos. Deixaram os amigos com lágrimas nos olhos. Mariazinha foi a que mais sentiu a mudança. Acostumada a andar pelos caminhos, tateando a escuridão, sempre amável com as pessoas, o que seria dela a partir de agora, num ambiente estranho, a andar pelas ruas repletas de gente?

Levaria tempo para se acostumar a nova realidade.

O pai comprou uma casa num bairro distante do centro da cidade. Mariazinha foi matriculada numa escola onde os cegos tinham um tratamento especial. Ali aprendeu a ler pelo Braille. Logo se destacou entre os colegas com a mesma deficiência visual.

Aos menos de vinte anos aquela menina moça se tornou  professora. Gradou-se com louvor entre os colegas, todos cegos.

Foi designada para lecionar numa escola modesta da periferia. O salário não era lá essas coisas. Mas era tudo com que Mariazinha sonhava desde os tempos naquela escolinha rural.

Dedicada, atenciosa, Mariazinha era amada pelos alunos. Os quais sempre a respeitaram, desde o primeiro dia de aula. Fazia da sua incapacidade uma ferramenta a serviço de todos. Aprendeu a usar a lousa para ali desenhar tudo que aprendeu durante o curso onde sempre se sobressaiu acima da média. A cegueira nunca lhe foi um entrave na sua vidinha singela. Quem a visse a caminhar pelos passeios, a atravessar as ruas, sempre usando o tato como guia, não se cansava de admirar a enorme coragem da ainda menina, vinda de longe, depois de passar quase a vida inteira entre pessoas simples da roça onde nasceu.

Mas outras agradáveis surpresas vieram depois. Um médico especialista, depois de saber do estado daquela professorinha amada pelos alunos, dela se apiedou.

Levou-a um centro de referência em oftalmologia. Ali estudou melhor o seu caso. Outro diagnóstico foi feito. Constatou uma degeneração macular da córnea. Que poderia ser contornada por um transplante.

A cirurgia foi marcada para janeiro próximo. Era dezembro ainda. Em janeiro Mariazinha entraria em férias. E poderia perfeitamente operar seus olhos, quem sabe devolvendo-lhes a visão.

A operação foi um sucesso. Dois dias depois de retirarem as bandagens Mariazinha passou a enxergar a vida. Deslumbrou-se com o colorido das coisas. Sorriu ao ver o voo dos passarinhos. O nascer do sol. O ir a vir das pessoas.

Mas, na primeira vez que saiu a rua sozinha, caminhando sem sua bengala companheira, viu, numa curva do caminho, um assalto a mão armada. Assustou-se com a violência desmedida da cidade. Mais adiante um tiroteio, balas perdidas ricocheteavam perto dela, uma pessoa morreu. Mero circunstante que passava na hora errada.

Tudo isso aconteceu no primeiro dia em que Mariazinha começou a ver de novo.

No segundo dia mais percalços se interpuseram no trajeto de Mariazinha até a escola. Menores, meninos de rua, esmolavam num semáforo. Um deles, o menorzinho, garoto ainda, foi levado pelas orelhas, por um guarda mal encarado, a um lugar desconhecido. Mariazinha, soube depois, que o menino foi enterrado depois de levar um surra. Sem ao menos ter culpa por ter nascido miserável.

Uma semana se passou desde quando Mariazinha voltou a ter visão.

Desolada pela situação pela qual o país passava, Mariazinha confidenciou a mãe: “mãezinha querida. Não sei se foi uma boa opção voltar a enxergar. Passei quase a vida inteira entregue às trevas. Imaginava, dentro da minha consciência, que o mundo seria tão lindo. Agora tudo se transformou. Imaginava que antes, de redescobrir as cores do mundo, que tudo era colorido de rosa ou azul. Depois de constatar a violência que nos rodeia, de ver o quanto o mundo é cruel, não sei se vou ser feliz como era antes. Antes era feliz e sabia quanto. Agora, depois de assistir, sem poder modificar o status quo, o quanto a vida se veste em cores sombrias, talvez voltando a vida de antes continue a imaginar a felicidade em seu devido lugar. Mãe, por favor, peça que o doutor desfaça a cirurgia que me devolveu a visão. Prefiro ver o mundo com as cores de antes. Mesmo na sua negritude. Confesso ser mais feliz assim.”

Talvez, no meu conceito, que sempre enxergou com perfeição as cores do mundo, Mariazinha tenha de fato razão.

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