Ainda tenho planos

Hoje amanheci alguns dias, meses, horas, mais velho. Ao todo são quase setenta anos.

Se contasse os minutos, segundos, horas, nem imagino quantas seriam. O fato que por mais que a gente tenta não conseguimos retardar o tempo. Nem ao menos fazer o relógio voltar atrás. Pará-lo, nem em pensamento.

A vida segue adiante. Em frente. Quem pensa em retroceder infelizmente comete um ledo engano. O que nos espera? O que vai acontecer de agora a algumas horas? Não vale a pena imaginar. É melhor viver a vida como ela se mostra. Linda como no dia de hoje. Sol ameno, algumas nuvens cinzentas talvez denunciem chuva no debrum da tarde.

Fazer planos sempre fez parte do meu viver. Antes mais. Hoje menos.

Há alguns anos atrás, quando a mocidade em mim assoprava, quando ainda criança, sonhava receber de um Papai Noel em quem acreditava uma linda bicicletinha de rodinhas amarelas. E a tal bicicletinha apareceu. Numa noite quando menos esperava. Quando a vi, debaixo daquele pinheirinho ainda verde, quase não acreditei. Nela tentei andar. Mas minhas perninhas curtas mal conseguiam alcançar o pedal. Mas acabei conseguindo pedalar depois de algumas quedas. Foi nesta noite de Natal que comecei a sonhar.

Mais tarde, já deixando o ensino médio, os planos mudaram. Já completos dezoito anos, um cadinho mais, qual profissão escolher? Sem sofrer a influência dos meus pais, foi decisão minha, dentre todas as escolhas a medicina me fez decidir que seria ela o caminho.

Embora, até aquele presente momento, não havia precedente de outro profissional da medicina entre nós. Meu pai era bancário. Minha mãe professora.  Não tinha outro aparentado na difícil e espinhosa profissão da arte de curar.

Uma vez médico qual especialidade seguir? Foi uma pedrinha nos rins que me fez decidir pela Urologia. E como doeu até que ela fosse eliminada. Mas felizmente foi aquela pedrinha marota que me fez mudar mais uma vez meus planos.

E eles continuaram. Embora ainda fosse jovem. A mercê de alguns desenganos.

Tão logo aqui cheguei, vindo de longe, quantos planos eu tinha.

Queria abraçar o mundo com as mãos.

Na minha cidade do coração muitos colegas eram fazendeiros. E eu, logo que aqui cheguei, depois de alguns anos de trabalho duro, operando nos três hospitais, consegui concretizar outro plano.

Comprei um pedaço de chão. Era uma rocinha desprovida de quase nada. Um curralzinho tosco. Algumas vaquinhas sem pedigree. Uma casinha quase caindo de tão velha que era.

Mas, com o tempo passando, descobri que nem todos os planos são exequíveis. Nem sempre um médico consegue aliar a profissão com a de fazendeiro. Pois cuidar da terra exige dedicação em tempo total. E tempo era o que não tinha. Aos sábados meus planos eram cuidar da roça. Mas, com o tempo passando, não consegui aprender a razão de o leite ser branco e a vaca preta. Daí a minha insatisfação com aquele plano que acalentava desde os tempos de criança. Quando passava as férias na roça de umas tias avós. Na vizinha Perdões.

Já hoje, com o tempo passando, ainda tenho muitos planos a serem realizados.

Embora não me considere velho tornei-me avô. E como é gostoso cuidar dos netinhos. Assistir aos seus crescimentos. Ouvir deles as primeiras palavras. Ajudá-los em seus passinhos trôpegos. Até mesmo, quando os pais se ausentam, tomar parte em suas traquinagens. Rolar no chão com eles. Fazer de conta que as historinhas de mentirinhas não são frutos de suas imaginações férteis.

Depois de mais velho meus planos mudaram. Não mais tenho sonhos de abraçar o mundo com as mãos. Elas já não são tão fortes como eram dantes. Mas que sejam suficientemente fortes para continuar na missão que escolhi, anos antes. Que eu possa exercer a medicina pelo menos alguns anos mais. Que eu consiga acompanhar meus netos até que eles se tornem pessoas de bem. Que consigam realizar os próprios planos como aconteceu comigo.

Hoje, aos quase setenta anos, nesta manhã quando o sol começa a brilhar, agora são sete e meia, ainda faço planos. Espero, por muitos anos.

Ainda tenho saúde. Inspiração ainda me sobra. Disposição não me falta. Prazer de viver abunda dentro de mim.

Quando não mais puder fazer planos, aí sim, que me alijem de mim…

 

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