Por quanto tempo mais…

Acordei hoje a mesma hora de sempre. Um sol tímido brilhava do lado de fora da minha janela. Estava fresco. O azul do céu pouco a pouco tomava conta das nuvens brancas. Uma névoa rarefeita encobria parcialmente o horizonte. Talvez, no decorrer desta sexta-feira, mais tarde iria chover.

Sexta-feira é considerada, por muitos, um dia especial. Começo de um descanso curto. Sábado e domingos poucos trabalham.

No meu caso sábado é dia de ir à roça. Ali passo horas imerso naquele ambiente sadio. Onde bichos que não falam, mas por certo compreendem a angústia que me cavouca as entranhas, a ansiedade que me consome na cidade, ainda longe da aposentadoria, fazem com que eu renove as energias, e volte à cidade de alma lavada.

Com certeza não tenho o umbigo enterrado na roça. Mas meu coração muge alto por tudo que lá encontro. Pessoas singelas, mãos ásperas pelo trabalho constante, fala descomplicada, sinceras no trato, em quem se pode confiar.

Estou vítima de certo enfado pela rotina que me consome. Fazer tudo sempre igual, dia após dia, nestes anos todos desde que me entendo por gente, tem-me consumido ano após ano.

Afinal são quase setenta anos. De trabalho diuturno se pode contar mais de quarenta anos. Acordando cedo. Atendendo pessoas que por vezes não compreendem as dificuldades que a vida de médico nos impõe. Tentando aliviar dores sem pensar nas próprias. Naquelas idas de vindas de um caminhar constante. De segunda a sexta-feira. Deixando os sábados e domingos para o ócio merecido.

Por quanto tempo mais suportarei tantas desventuras? Por quantos anos mais estarei disposto a começar tudo de novo? Acordar ao nascer do sol. Tentar conciliar o sono a mesma hora de sempre. Ouvir os queixumes dos que me procuram.

São respostas nas quais não tenho pensado tanto. Vivo imerso em pensamentos. Mas não sou de lamentar tantas contrariedades.

Simplesmente vivo o presente. Procura me exercitar ao deitar das tardes. Antes corria pelas estradas perto da minha cidade. Nos dias de hoje contento-me com aquelas esteiras em ambientes protegidos da inclemência do sol e da voracidade do vento.

A rotina do dia a dia é que me faz ficar em sobressalto. Não tenho como, ainda, mudar o status quo. Ainda não estou aposentado. E nem me preocupo quando isso vai acontecer.

Hoje acordei a hora de sempre. Foi um sono leve. Como de hábito.

Levantei-me da cama antes das cinco horas. Tomei um bom banho. Mas a seguir recostei-me ao travesseiro pensando na sexta-feira que começava àquela hora.

Por quantos anos, dias, meses, continuarei a fazer tudo como de costume. Atender no consultório, deslocar-me para locais de poucos recursos para outro tipo de atendimento. Na intenção pura e simples de resolver problemas de saúde de pacientes oriundos do sistema único de saúde. Cada vez mais impotente.

Por quantos anos mais serei capaz de viver com a mesma intensidade de agora? Hoje me sinto bem. E amanhã? E depois de depois de outro amanhã?

Seria apto a cuidar de mais um neto? Os três que me foram dados de presente já me enchem os pensamentos de orgulho. Junto a eles me renovo. Volto aos tempos de criança.

Quando estou ao lado deles nem tempo tenho de pensar na vida. Muito menos no por quanto tempo resistirei aos lamentos do tempo.

Hoje beiro os setenta. Amanhã, no ano que vem, outra idade me vai colher tomara com a mesma disposição de sempre. Mas seria capaz de fazer tudo que tenho feito?

Ainda não sei dizer. Ao fazer vaticínios sempre cometo senões.

Por quanto tempo mais estarei vivo? São questões que a mim não competem responder. Deixo a resposta ao tempo. Só ele entende o quanto ainda desejo viver.

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