A moça que vivia de lembranças

Até parece que ela não teve infância.

Desde cedo, menina ainda, Mariazinha vivia pelos cantos, cuidando das bonecas, olhando fotografias antigas.

Não se dava bem na escola. Sofria discriminação das coleguinhas devido a sua aparência recatada. Mais parecia uma velha senhora. Devido aos trajes fora de moda.

Nunca aparecia de joelhos a mostra. A saia rodada ia até os tornozelos. Encobrindo quase tudo. Menos a sua compostura. Era tida como envergonhada demais. Não que fosse feia, desengonçada. E sim pelo par de óculos, de lentes grossas. Mais parecia um fundo de garrafa.

Mariazinha, devido à carência de amigos, em pouco mais de cinco anos evadiu-se da escola. Mal completou o segundo grau. Não que lhe faltasse inteligência ou aplicação. Ou mesmo interesse pelas matérias. Mas acontece que aquela menina vivia pelos cantos, observando o entorno, alheia ao que se passava na vida escolar. As professoras, preocupadas com seu comportamento, alertaram precocemente aos pais. Que já sabiam que a sua filha era assim mesmo. Em casa não fugia à regra.

Aos doze anos Mariazinha veio a se interessar por um rapazola. Mas pouco durou aquele entrevero. Ela só queria brincar de bonecas. E ficar admirando as fotografias antigas. Que lhe falavam direto ao coração.

O tempo passou. Mariazinha, meninazinha comportada, vivia dentro de casa. Como amava os pais.

Era filha única  a pobre criança já crescidinha. Aos quase vinte anos resolveu voltar à escola. Mas logo se desinteressou pelos estudos.

A vida que Mariazinha levava tudo indicava que ela iria ficar solteirona. Teve alguns romances. Que não deram em nada. Aos trinta anos, vivendo em companhia dos pais, tinha de tudo que desejava.

O tal álbum de fotografias logo se desdobrou em mais de cinquenta. Era uma coleção de fotos antigas dignas de fazerem parte de museus.

Mariazinha vivia entregue às lembranças. Com um bom emprego, numa repartição pública, veio a se aposentar antes dos sessenta. Boa funcionária, elogiada pelos patrões, Mariazinha era cortejada não pela aparência. Um tanto recatada demais. Poder-se-ia dizer fora do peso.

Como permaneceu solteira, por convicção, não por desdenhar dos machos, uma ou outra vez deitou-se com algum deles, mas ficou na primeira noite, só lhe restava cuidar dos pais.

Acontece que um dia o pai veio a falecer. Morreu de velho. Sob os cuidados da filha única. Que não o abandonou por um minuto sequer ao pé da cama. Até fechar-lhe os olhos.

Daquela data em diante passaram a viver, mãe e filha, num casa enorme.

A mãe, já bem idosa, em poucos anos veio a falecer.

A partir de então só restou Mariazinha. Que continuou a sua vidinha insossa. Entregue a velhas recordações.

Aos sessenta anos, completos naquela data, Mariazinha, vivendo solitária, vivia entregue ao seu passado. Entre seus álbuns de fotografias. Lembrando-se da família que um dia fez parte uníssona de sua vidinha cheia de nostalgia.

Um dia Mariazinha envelheceu. Chegou  aos setenta anos vivendo só. Entre suas lembranças, naquela casa enorme.

Mas ninguém consegue viver só.

Acontece que um belo dia Mariazinha caiu enferma. Sem companhia, precisando de cuidados, a velha senhora não conseguia se levantar da cama.

Mesmo assim passava os dias olhando o velho álbum de fotografia. Entregue as suas lembranças, ao seu passado, as saudades do que passou.

Foi quando a encontraram, o que restou dela, de olhos fechados, mãos estendidas no peito, abraçada ao velho álbum de fotografia.

Mariazinha morreu durante a noite. Solitária em seu leito de morte, sozinha entre suas lembranças.

Até hoje, quando me lembro da história de Mariazinha, deixei de cultuar o passado. Vivo o presente. Procuro me iludir que tenho muitos anos pela frente. O que passou, passou.

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