Por isso sofro

Maldita sensibilidade!

Que faz a gente se arrepiar por qualquer coisa. Por uma criança ao desabrigo. Por um mendigo de mãos estendidas. Simplesmente por não poder resolver nem a metade dos problemas que afligem a humanidade. Somos humanos. Temos sentimentos. O que nos diferencia dos animais?

Como o mundo anda pela contramão. Ruas lotadas de gente. Que nem ao menos tem tempo de cumprimentar com um amistoso bom dia. Que seja feliz. Sentimento este cada vez menos presente nestes tempos difíceis que atravessamos.

Cada um sofre calado. No seu canto. Ensimesmado entre  seus problemas.

Não temos como compartilhar nossas dificuldades com nossos iguais. A pressa nos consome. A luta pela sobrevivência toma todo o nosso tempo. Cada vez mais exíguo.

Tempos difíceis compartilhamos. O desemprego assusta. A crise avança.

Nos meus atendimentos nos postos de saúde cada vez mais os pacientes me pedem os tais fármacos de tarja preta. A insônia e ansiedade predominam.  A angústia toma conta da gente. E os pobres médicos nada podem fazer para amenizar o status quo.

A cada esquina mais esmolantes de mãos estendidas imploram a nossa ajuda. Nem ao menos um Deus lhe pague ouvimos mais. Pois os mesmos são reféns das drogas. Vivem a margem da sociedade como párias sociais.

Sofro por causa de minha impossibilidade de amenizar tudo isso. Sofro por motivos múltiplos. Sofro devido à maldita sensibilidade. Sofro simplesmente por não poder mudar o que se passa dentro de mim.

Sou assim. Talvez tenha nascido assim. Uma vez menino, ainda de calças curtas, uma vez assisti a um cãozinho esfomeado a vagar pelas ruas. Tinha costelas à mostra. Pelo eriçado. Tive vontade de levá-lo a minha casa. Mas ele esquivou-se a minha intenção. Evadiu-se pela rua. Soube, mais tarde, que o pobre foi atropelado por um carro apressado. Talvez a morte o tenha aliviado do seu sofrimento. Tomara no céu dos cães ele tenha a paz que não encontrou  entre nós.

Sofro por causas variadas. Sofro por não poder amenizar a dor dos outros. Sofro devido a situação aflitiva por que o país atravessa.

Gostaria de não sofrer tanto assim. Gostaria de poder viver num mundo melhor. Mais igual. Com menos desnível social.

Mas simplesmente sofro.

Hoje cedo, final de mês, acordei com uma estranha sensação a corroer-me as entranhas. Como de costume a cama me cuspiu logo cedo. Era antes das cinco da manhã.

Mais uma semana me espera. Logo adentramos a outro mês.

Espero não continuar a sofrer tanto. Espero parar de sofrer.

No entanto, como não consigo atenuar o sofrimento de outrem, ainda sofro.

Como evitar o próprio sofrimento se ele faz parte de mim?

Não tenho como mudar o que se passa dentro de mim. Nasci assim. Cresci da mesma forma. Tornei-me adulto tentando evitar o sofrimento. Tornei-me quase ancião mercê do sofrimento.

Tenho de me consolar. Afinal sou humano. Enterneço-me com o sofrer do próximo.

Sou vítima da sensibilidade. Até parece uma enfermidade. Para ela não existe vacina. Nem ao menos como me prevenir do contato com outras pessoas que sofrem por qualquer coisa.

Tomara, num futuro perto, quando não mais estiver entre os vivos, consiga parar de sofrer.

Entretanto, continuo a sofrer. Por qual motivo? A única maneira de amenizar o que se passa dentro de mim é continuar a externar, através da escrita, todos os meus sentimentos. Só assim consigo parar de sofrer.

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