A cada amanhecer

A cada dia que nasce, a cada manhã que renasce, acordo sempre pensando no amanhecer.

Quantos amanhãs mais me esperam? Quantos dias mais estarei com a mesma disposição de sempre, acordando cedo, caminhando até o consultório, pensando na semana que tem começo, lucubrando sobre a vida que tenho levado, nestes anos todos do meu viver?

Confesso que cada vez mais me desencanto com o mundo que me rodeia. Principalmente mercê da sensibilidade que me cavouca por dentro, ao andar pelas ruas da minha cidade, percebo, a cada equina, pessoas dormindo ao relento, viciados com olhos esbugalhados, parecendo zumbis semimortos, prestes a deixarem de viver.

Nesta manhã esfumaçada pela névoa densa que recobre tudo o horizonte mal se deixa ver. Poucos madrugões como eu se atrevem a sair às ruas.

Mas hão de concordar comigo. Quando aqui estou, na solidão da minha oficina de trabalho, não existem dúvidas de que se trata da melhor hora para escrever.

A cada amanhecer, percebo, faça sol ou em dias nublados, mais tarde o sol com certeza irá acordar, penso na vida que tenho levado. No que fiz de bom ou no que resta por fazer.

Mil conjecturas me passam pela cabeça.

Concordo comigo mesmo que abracei a profissão exata. A medicina ainda me seduz. Embora ela tenha mudado tanto que não consigo acompanhar as mudanças.

A cada amanhecer, a cada despertar de um novo dia, ao sair da cama, deixar o leito, um certo enfado toma conta de mim.

Logo depois, ao olhar o espelho, e ver ali refletida a minha imagem, como ela se mostra envelhecida. Pra onde foram aquelas longas madeixas? Onde ficou escondido aquele garoto traquinas? Pra onde foi aquele menino esperto, que não cabulava aulas, e era considerado bom aluno principalmente em ciências humanas?

O espelho não sabe a resposta. Talvez nem eu mesmo saiba.

A cada amanhecer, a cada manhã, a cada novo dia, que tem seu começo, percebo, com a idade avançando, lépida e desassossegada, que a cada dia que passa anos são inseridos no meu calendário.

Não há como fugir do tempo. Não existem maneiras de ir contra os ponteiros do relógio.

A cada amanhecer, a cada nascer do sol, ou encobrir da lua, ao sair de casa, bem cedo, nem sequer imagino o que vai ser de mim.

A única certeza que me assalta é que estou um dia mais velho. Conto anos e não desenganos. Sou feliz mesmo sabendo que algum dia não mais estarei por aqui. O que me conforta é ver, a cada dia que passa, o sorriso dos meus netos, o abraço reconfortante que eles me dão a hora de dormir.

Ontem não fugiu a regra. Dom dormiu junto a mim. Theo, dorminhoco, continuava dormindo assim que fui ao seu quarto.

Já o querido Gael dormia longe do meu abraço. Em poucos dias ele vai estar por aqui, no seu engatinhar titubeante, prestes a ensaiar os seus primeiros passos.

A cada amanhecer como é bom sentir na pele não tão viçosa como outrora o frescor das madrugadas. O assobio do vento de outono. O despertar da primavera com seu hálito primaveril. Até mesmo o frio do inverno me encanta. Da mesma forma o quentume do verão.

A cada amanhecer, a cada acordar, mesmo preguiçoso, assim saio às ruas, ainda vazias, sinto por dentro aquela sensação de plenitude, embora não tenha a idade e a ligeireza de dantes.

A cada despertar, ao acordar, mesmo num dia cinzento como o de hoje, vinte de maio, ainda me toma pelos braços a certeza de estar vivo, ainda atuante, com a imaginação em efervescência, talvez mais do que antes.

Bem sei que amanhã vai ser outro dia. Tomara desperte o sol. A neblina se desfaça.

No amanhecer de mais um amanhã tenho comigo a certeza, não pairam dúvidas, mesmo ignorando como vou estar amanhã, outro texto vai sair dos meus pensamentos.

E como eles me fazem tão bem. Por quanto tempo mais? Nem eu mesmo sei.

Deixe uma resposta