Imagine o Zé Pereira

Hoje cedo, por volta das cinco e meia da manhã, a temperatura oscilava entre seis e sete graus. O céu estava escuro. Nuvens cinzentas tapavam a boca do sol. Um ventinho maroto assoprava com sua voz fanha tudo ao derredor. Era inverno em seu começo.

Ao deixar a casa, naquela hora madrugada, poucas pessoas se viam caminhando pela rua. Alguns trabalhadores se dirigiam aos seus serviços. Todos tiritavam de frio. Um pedreiro amigo, mestre de obra de uma construção perto de onde moro, parou-me para um conselho: “acordei com uma conjuntivite. Será que na farmácia alguém me receita um colírio”?

Eu mesmo não pude fazer-lhe a vontade. E nem mesmo sabia se por acaso algum farmacêutico seria capaz de prescrever-lhe um colírio para aliviar a dor em seu olho. Toda receita onde está incutida a presença de um antibiótico deve ser prescrita por um médico. Mesmo assim recomendei-lhe cautela. Que evitasse poeira. E protegesse seus olhos com um par de óculos escuros.

Cheguei ao meu consultório numa fração de segundos. Do lado de fora da minha janela o vento uiva como se fora um lobo faminto. Aqui me sinto agasalhado. Protegido neste ambiente acolhedor. Nesta hora madrugadora o prédio ainda se encontra vazio.

Foi quando me lembrei de um amigo da roça. Seu nome é Zé Pereira. A esta hora ele deve estar acordado há horas perdidas. Já deve ter sido cuspido da cama desde as quatro da manhã.

Embrulhado naquele cobertor surrado. Na cabeça uma toca improvisada. Depois de um café requentado. Acompanhado de uma broa de milho.

Zé Pereira é um madrugão consumado. Acordar ao despertar do dia faz parte de sua rotina. Ele mesmo cuida de uma penca de vacas leiteiras. Tira leite ao espremer dos dedos desde quando contava com sete anos de vida.

Acostumado a esta lida diária, quando com ele proseio, logo ele vem com esta prosa boa: “quer saber, doutor, caso tenha de mudar de vida não sei o que seria de mim. Sou feliz mesmo a mercê das intempéries. Aqui me sinto a vontade. Não sei se por acaso me mudasse pra cidade se a tal felicidade iria continuar”.

Agora são quase sete horas da manhã. A partir das oito desperto meu lado médico. Não faz tanto frio como quando aqui cheguei. As nuvens escuras cedem lugar ao sol. As ruas ainda permanecem quase vazias.

A esta hora Zé Pereira já acabou de ordenhar as vacas. Elas esperam pacienciosamente a comida ser distribuída naquele cochos cheios de trato. A seguir ele aparta os bezerrinhos. A porcada faminta grunhe mais embaixo.

Imagina a vida do Zé caso o mudassem pra cidade. Ele seria infeliz. Com certeza. Já eu, homem nascido na cidade, acostumado a esta rotina por vezes enfadonha, não sei o que seria de mim vivendo na roça. Acordaria cedo. Como de praxe. Mas não saberia fazer o que Zé Pereira faz com maestria. Cada um com seu destino. Viver na roça para mim talvez não fosse tão auspicioso. Como apraz ao amigo Zé Pereira.

Cada um é cada um. Não me imagino fazendo outra coisa senão a medicina. Mas o Zé talvez não fosse feliz como eu me sinto agora. Escrevendo o que minha inspiração dita.

Acordar ao raiar do dia, correndo ao final das tardes, me deslocando de um lugar ao outro, Tentando driblar a rotina enfadonha do dia após dia.

Já não consigo imaginar o amigo Zé na mesma atividade minha. Ele não seria feliz longe de suas vacas. Muito menos cuidando de pacientes sofredores. Gente que merece um tratamento melhor. Pena que em nosso país a saúde pública anda de mal a pior.

Agora o sol brilha em intensidade vívida. A temperatura se mostra mais amena. Na roça do amigo Zé as vacas já foram pro pasto. A pastaria carece de chuva. Mas ela só deve voltar de hoje a alguns meses.

Não me imagino fazendo outra coisa. Da mesma forma que o Zé Pereira não se daria bem na cidade. Cada um é cada um. Imaginem se todos nós fossemos iguais? O mundo perderia as cores. Como o arco-íris carece delas. Já eu preciso de inspiração para viver.

 

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