Desabafo do Zé Desafortunado

Sempre que o vejo, assentado nos calcanhares, na mesma encruzilhada, mascando um cigarrinho de palha apagado, cumprimento-o com a mesma cordialidade: “Zé, como vão as coisas”? E ele, sem desviar os olhos do chão poeirento, responde monossilabicamente: “mar. de mar a pior”.

Deixo o amigo Zé entregue a sua meditação.

No próximo sábado é a mesma ladainha.

Não tem chovido como deveria. A terra ressequida ressente-se da falta de chuva. A pastaria mostra-se amarela. Fora algumas áreas cinzentas onde o fogo deixou sua marca.

Como tem sido difícil a vida de quem mora na roça. O preço do leite abaixou. Justamente neste período da entressafra. Ao revés, na contramão da vida, todos os insumos usados na lida com as vacas foram as alturas. O óleo diesel nunca esteve tão caro. E as peças do velho trator, carecendo de serem trocadas, inviabilizam a produção. E o bom Zé, desanimado, pensa em mudar de profissão. Como se soubesse fazer outra coisa a não ser cuidar da roça. Acordar ao cantar do galo. Ordenhar a vacada sempre faminta. Roçar a pastaria quando ela se enche de ervas daninhas.

Naquela manhã de sábado, quando fui fazer-lhe uma visita, encontrei o amigo Zé entregue as suas lucubrações.

De começo de prosa perguntei-lhe pra onde ia.

E ele, coçando a cabeça desprovida de cabelo, respondeu-me, entre dentes que não tinha: “vou pros cafundós de Judas. Aqui não tem mais serventia. Tudo que tinha foi tomado pelo banco. Não tenho como pagar a dívida. Agora só me resta me despedir da terra. Vou pra cidade tentar mudar de vida”.

Tentei consolar o pobre Zé. No entanto percebi, dentro de seus olhos tristonhos, uma angústia nunca antes vista dantes.  Desconsolado com  carestia dos produtos, desarvorado com o preço pago por um litro de leite puro, como lhe era a alma, Zé decidiu vender a terra. Entretanto quem comprou aquela rocinha prejuizenta não pagou como prometido. Emitiu um cheque que foi e voltou, amarelo de vergonha.

E o desconsolado amigo Zé amargou o prejuízo.

Deixei-o entregue ao seu desconsolo. Voltei a cidade pensando no quanto a vida na roça é dura. O que seria da gente sem eles? Só nos restaria comer asfalto. E beber leite sem gosto. Embalado naquelas caixinhas de supermercado.

Na semana seguinte não mais encontrei o Zé. Sua rocinha estava entregue ao abandono. As vacas ruminavam o que comer. O velho curral foi derrubado por uma tempestade durante a semana.

Nesta terça-feira, quase final de agosto, dia seco, temperatura em elevação, reencontrei o pobre Zé dormindo debaixo de um viaduto.

Não pude parar por muito tempo. Pois o trabalho me esperava.

Durante os poucos segundos do nosso encontro, foi dele que ouvi estas palavras que transcrevo tal e qual elas foram ditas: “ quer saber o que foi feito de mim? Nada mais me resta a não ser o desconsolo da solidão. Bem que gostaria de voltar ao meu pedaço de chão. Mas, como viver da terra? Se o desgoverno que nos assiste nem sabe que o leite vem da vaca. Que as nossas mãos caludas ficam assim graças ao trabalho pesado. Que arar a terra não fica barato. Que acordar cedo é gostoso. Que ouvir o canto do canarinho da terra ciscando o esterco de curral tem o mesmo som de milhares de violinos. Que as vacas ruminam de  bucho cheio. Como seria bom se a gente tivesse o mesmo valor de um gerente de banco. Que nos promete mundos e fundos. E quando a gente mais precisa deles nem conseguimos ser atendidos. Empacamos naquelas roletas giratórias. Na última vez que tentei saldar o meu empréstimo fui escorraçado daquela casa bancária. Como se fosse um ladrão de banco. Agora só me resta dormir ao relento. Como um reles mendigo. Dá pena, meu amigo. Muita pena mesmo. Quem sabe um dia as coisas melhoram? Só que não mais estarei aqui para ver.”

De fato. Na semana seguinte soube, pela televisão, notícias do Zé Desafortunado. Ele foi encontrado mortinho da silva. Atropelado por um ônibus desgovernado.

Como ele acontecem inúmeros casos país afora. Até quando? Nem sequer imagino.

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