” O que fazer com minha dor”?

Hoje amanheceu um dia cinzento. Nuvens negras prenunciam mais chuva no decorrer do dia.

As ruas ainda estão vazias. Madrugões, como eu, já estão de pé.

Um friozinho insistente, do lado de fora a minha janela, pede um agasalho qualquer. E eu, aqui dentro, sinto-me protegido. Dispenso o grosso casaco recém-retirado do armário. Ao deixar meu consultório, por volta das nove e meia, desta mesma manhã, novamente visto aquele casaco, que agora descansa na cadeira do lado.

Um dia destes, não sei precisar a data, durante um atendimento de praxe, numa unidade de saúde, pra onde vou, na manhã de hoje, recordo-me daquele dia, quando por ali passou um consultante.

Seu Manoel, um senhor oriundo da roça, apareceu acompanhado de uma filha.

Ele, quando foi chamado, pelo nome, demorou quase uma eternidade para adentrar a minha sala. Acontece que ele se deslocava numa cadeira de rodas. E a porta, aberta pela metade, quase impedia o seu acesso. Foi preciso pedir o auxilio de uma enfermeira para que o cadeirante fosse examinado.

Começamos a conversa apertando-lhe a mão. A sua filha, que o acompanhava, tomou a iniciativa. Placidamente a bela moça explicou-me que o pai, já andado em anos, tinha grandes dificuldades em verter urina. Que mal dormia durante a noite. Passava a noite inteira debruçado a um urinol.

A seguir examinei-lhe a próstata. Ela estava crescida. Com aspecto de tumor maligno. Dura, enrijecida, cheinha de nódulos suspeitos. Recomendei-lhe que fizesse uma biópsia dirigida pelo ultrassom.

Foi neste instante que Seu Manoel dirigiu-me a palavra, respeitosamente, chamando-me de doutor.

“Quer saber? Meu bom amigo. Nesta altura de minha vida, já passados tantos verões, já passei por tanta coisa, que nem me lembro mais. Tive tuberculose aos vinte anos. Foi aí que me foi retirado um dos pulmões. Fui operado de úlcera perfurada antes dos quarenta. Aos quase cinquenta, quando mais precisava trabalhar, sofri um acidente vascular cerebral. Foi então que fui jogado a esta cadeira. Minhas pernas não têm forças para se levantarem. Fui aposentado por invalidez. Recebo um salário de fome. Que mal dá para viver. Quando marcaram esta consulta, para saber como anda a minha próstata, relutei em aparecer. Mas aqui estou, meu bom doutor. Tudo que passei ainda é pouco. E espero viver um pouco mais. Caso tenha mesmo um câncer da próstata, sei que não tenho condições de ser operado. Daí a minha recusa de fazer o tal exame. Que, por certo vai me causar mais dores que as minhas. Por favor, me deixe viver como estou. Estou cansado de sofrer”.

Despedi-me do Senhor Manoel com uma sensação de impotência. Não tinha mesmo nada que fazer.

“O que fazer com minha dor”? Inquiriu ele, antes de deixar a minha sala.

Ele estava certo. Com ele aprendi mais uma lição. Se não pode curar uma enfermidade, como um câncer avançado, pelo menos tente amainar as suas dores. Foi o que tentei fazer com Seu Manoel. Prescrevendo-lhe uma pitadinha de esperança. Que ela ainda viva alguns anos mais. Que ele sobreviva as suas dores. E morra feliz. Como nunca foi.

 

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