Quem sabe um dia

Hoje acordei a hora de sempre. O sol brilha forte. Começo de outono.

Embora a maior parte das pessoas continue em quarentena eu me isolo dentro do meu consultório.

Não consigo ficar trancafiado dentro de casa. Dentro de quatro paredes. Assistindo, impassível, o desenrolar dos fatos. Eles continuam a amedrontar pessoas. O mundo inteiro assiste a tal pandemia.

A crise se instalou de repente. Ruas vazias. Poucos passantes são vistos caminhando pelas ruas. Não sei como trabalhadores autônomos vão suportar tal estado de coisas. Tomara a tal endemia não os faça morrer de inanição. Ao contrário do que propaga os meios de comunicação.

Apenas algumas lojas são vistas de portas abertas. Grande parte dos esculápios trabalha em casa. A maior parte de nós fecha os consultórios. E eu, aqui dentro, não me esquivo de trabalhar.

Profissionais de saúde são como guerreiros na linha de frente. Hospitais não podem fechar.

Quem sabe um dia, quando estiver aposentado, totalmente, consiga ficar em casa. Nos dias de hoje não consigo. Também, num dia lindo como o de hoje, começo de outono, com este sol brilhando, temperatura amena, escrever torna-se quase uma obrigação.

Não tenho receio de ser contaminado pelo tal vírus. Por quantas gripes passei. Quantas viroses me fizeram acreditar que uma força superior tem o poder de nos curar.

Sou avesso a fármacos. Até na presente data recuso-me a fazer exames. Não sinto nada. A não ser uma vontade imensa de viver.

Quem sabe um dia, na véspera de me despedir da vida, vou ficar isolado do mundo. Não desejo ficar atrelado a um leito de hospital. Não me impeçam de fazer o que mais aprecio. Caminhar pelas ruas. Correr quando ainda for capaz. Conviver com as pessoas. Observar o voo dos pássaros. Afagar quem me apraz.

Quem sabe um dia, quando não puder fazer o que tenho feito, sair de casa bem cedo, caminhar rumo ao meu consultório, ligar o computador, escrever o que o cotidiano dita, aí sim. Que me alijem de mim. Não permitam nunca que eu seja internado num leito qualquer. Submisso a aparelhos. Cheio de sondas e stomas a perfurarem meu corpo decrépito. Sem pode esboçar um sorriso qualquer.

Quem sabe um dia, quando a idade chegar, e eu, preso a uma cama macia, precisando de cuidadores para aliviar-me o sofrimento, sem ao menos poder emitir um lamento, neste momento íntimo possa pelo menos escrever: “por favor, deixem-me partir”.

Quando chegar este dia, infeliz de mim, que se recordem do que fui. Não o que passei a ser.

Quem sabe quando chegar este dia, quando não mais conseguir nem ao menos exprimir a minha vontade, por caridade, deixem-me partir.

E, quando não mais estiver aqui, neste mundo tão lindo, que deixem gravado no meu epitáfio: “aqui jaz quem viveu intensamente. E veio a se despedir do mundo tão simplesmente. Numa hora qualquer. Num momento de infelicidade”.

Quem sabe, quando esse dia chegar, quando a morte vier me buscar, por favor, não derramem lágrimas no meu velório. Não evitem o contato de mãos. Nem soneguem os abraços. Simplesmente façam como tenho feito. Abracem efusivamente seus irmãos. Pois a sua hora há de chegar.

Quem sabe um dia tudo isso vai acontecer. Que não seja num dia como o de hoje. Lindo, cheio de sol. Pródigo em vontade de viver.

 

Deixe uma resposta