Já eu não penso em mim

Foi-se o tempo da ambição desmedida. Da intempestividade que me tomava de afogadilho. Do pensar em mim deixando de lado os outros. Da pressa que me consumia. De correr atrás do que gostaria de ser.

Já hoje, tantos anos passados, lá se foi meu passado, como meus pensamentos mudaram.

Agora encontrei-me de fato. Sou o mesmo jovem, de outra idade, sonhador contumaz, mas um tanto mais equilibrado. Ainda sonho. No entanto são sonhos distintos.

Não mais durmo como antigamente. Durmo com o pensamento voltado há quantos anos mais terei pela frente. Em verdade me preocupo com o futuro. Já que ele não terá mais tanto tempo como era nos verdes anos da minha juventude.

Sonho de olhos abertos. Preocupa-me a saúde. Não tanto como era na tenra idade.

Faço, nos dias presentes, apenas o que me apraz. Felizmente fiz disso uma realidade.

Não trabalho tanto como dantes. Acordo a mesma hora de sempre. Não mais tenho o compromisso de ir ao hospital.  Agora, graças à idade que alcancei, ultrapassei a idade dos setenta, ainda longe de me aposentar por completo, pretendo, se alguma intercorrência não se interpuser entre mim e meus projetos, continuar na mesma atividade. Até quando a vida me deixar. Daí vou continuar a remar contra a corrente. Nestes tempos duros, quando muitos passam dificuldades, pretendo manter o equilíbrio entre a paz e a voracidade. Com a mesma alegria de viver. Acompanhando, de perto, o crescimentos dos meus netos. O sucesso dos meus filhos. Já que quase não tenho a quem prantear. A não ser a mim mesmo.

Neste momento presente, neste final de mês que se anuncia, aqui estou. Nesta sexta-feira que fecha os olhos do mês de julho. Anunciando outro semestre. Tomara mais ameno.

Antes pensava mais em mim. Já que precisava ganhar a vida. Constituir família. Ter filhos. Que hoje me deram netos.

Num dia destes, faz pouco tempo, por aqui passou, no meu consultório, um velho senhor.

Ele veio só. Meio cabisbaixo. Recurvado sobre sua coluna vergada pelo peso dos anos.

Adentrou a minha sala com a ajuda de uma bengala.

Foi preciso ajudá-lo a assentar-se à cadeira defronte a minha. E ele, depois de alguns minutos, começou a desfilar seu rosário de queixumes.

“Doutor, sou um velho decrépito. Ouço mal. Caminho com enormes dificuldades. Não tenho quem cuida de mim. Agora só me resta esperar a morte. Tomara ela apareça e não demore muito. Já vivi demais. Felizmente tive um passado maravilhoso. Nos dias de hoje só me restam as lembranças. Por elas e delas vivo. Estou a caminho do fim”.

“Ainda tenho dois filhos. Eles não me deram netos. Assim que fiquei enfermo, e precisava de cuidados, eles me internaram em uma casa de idosos. E lá vivo contando as horas para me despedir deste mundo”.

Depois de encerrar a consulta, que durou quase uma hora inteira, de examiná-lo como deveria, ao me despedir daquele senhor, alquebrado em anos, dele ouvi estas derradeiras palavras: “doutor, eu não penso em mim. Já vivi o bastante. Penso naqueles filhos ingratos. Aqueles filhos que deixam os pais ao desabrigo. Vivendo em asilos como aquele em que estou vivendo. Sem ao menos me fazerem uma visita. Sinto-lhes a falta. Pena que não sou correspondido nos meu sentimentos”.

Agora, nesta sexta-feira, final de mês, véspera do aniversário do meu pai, penso nele. Felizmente o tive ao meu lado quase uma vida inteira. E ele ainda se faz presente nas lindas recordações que dele tenho. Enquanto a minha vida persistir.

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