” Isso não é vida doutor”

Viver é desfrutar das madrugadas, sentir o sereno na face, olhar as estrelas em noites de lua cheia, amar e ser amado, ter saúde e viver sem medo de doenças a nos deixar no leito, fazer o que apreciamos, sem medo de ser feliz.

A vida com qualidade requer cuidados. Ter método, deixar o estresse de lado, viver sempre ao lado de pessoas que lhe querem bem, alimentar-se com alimentos saudáveis, e, principalmente, acordar cedo, exercitar-se regularmente, deixar o carro de lado, usando as pernas como veículos apropriados a locomoção.

Tudo isso fazia parte da vida daquele jovem.

Tiãozinho, alcunhado de Madrugão, tinha o costume de acordar ao cantar do galo.

Morava, quando menino, numa rocinha singela.

Aos doze anos já ajudava ao pai nas tarefas do campo. Estudava numa escolinha pertinho de sua casa. Para lá ia bem cedo. De merendeira às costas subia um morro empinado. De vez em quando ia à cavalo. E como amava aquela vidinha rica em saudáveis recordações.

Acontece, tudo que é bom dura pouco, segundo diz o ditado, um dia, do qual se lembra com uma tristeza imensa, a família teve de se mudar.

Aquela gleba de terras, fincada num fim de mundo, foi inundada por uma represa. Com ela veio o progresso, neste mundo carente de energia.

A indenização que receberem foi uma mixaria. Mal deu para recomeçarem a vida noutro lugar.

Naquela cidade grande não foram bem recebidos. Por não terem instrução suficiente o pai do menino acabou fazendo trabalhos inferiores. A renda da família despencou.

E passaram por enormes dificuldades.

Tiãozinho Madrugão, sem poder completar os estudos, teve de ajudar no sustento da casa.

Aos dezoito anos completos foi ser motoboy.

Acordava ao nascer da aurora. Abastecia a motocicleta comprada à prestação.

Enfrentava o trânsito pesado. Fazia entregas para uma lanchonete de periferia. E não podia atrasar um minuto sequer. Ganhava uns caraminguados. Uma quantia tão irrisória que mal dava para comprar os gêneros de primeira necessidade.

A família daquele jovenzinho passava fome. O pai caiu enfermo. A mãe, pobre senhora, cuidava da casa alugada.

Por atrasarem o aluguel foram despejados.

Num sábado, de tristes recordações, o pai de Tiãozinho teve de ser internado.

Por sorte, ou seria azar, naquele hospital faltava de tudo. Em menos de uma semana o pobre senhor recebeu alta ainda pior. E veio a falecer num domingo.

O sepultamento se deu num cemitério de periferia. Por falta de dinheiro foi enterrado como indigente. Sem nenhuma coroa de flores naquela lápide fria.

A vida continuava para o jovem Tiãozinho.

Agora, arrimo de família, Tiãozinho experimentou na pele toda a desgraça da vida.

Como motoboy continuava naquela peleja. Entre os carros se desviava a cada momento.

Num dia, era uma sexta-feira, com o corpo exaurido por tanta correria, o infeliz Tiãozinho foi colhido por um carro em alta velocidade.

Da moto só restou uma lataria toda amassada. Do corpo do infeliz um monte de ossos fraturados.

Foi quando o encontrei num leito de hospital. Ele estava engessado da cabeça aos pés. Gemia a gritos incontidos.

Não tive como me condoer da sua situação. Era mais um nesta selva de pedra que não poupa os menos aquinhoados.

Parei um cadinho defronte ao seu leito. Tentei consolá-lo.

Foi quando ouvi, daqueles lábios arroxeados, esta exclamação que me fez pensar na vida: “isso não é vida doutor”.

De fato. Viver é sentir na pele a brisa fresca do orvalho. E amar e ser amado. É poder curtir os netos a sorrirem. É pode voltar a casa com o corpo cansado. Sem se preocupar com o amanhã. É tudo isso e muito mais.

Deixe uma resposta