Foi a primeira e a última vez

Não diga que desta água não beberei.

Pois, por mais que não deseje que se repita o fato, algum dia, quem sabe, tenha de retroceder no tempo, voltar ao passado, e encarar frente a frente alguma coisa que o magoou.

Foi assim que aconteceu a um caboclo acostumado aos ares do campo, alcunhado de Zé da Mula, por causa de uma paixão antiga.

Zé vivia na roça. Até a idade que colhia nesta hora, trinta e três anos, jurava, de pés separados, que não carecia de companhia feminina. Pra ele bastavam as vacas. Junto delas galinhas poedeiras, porquinhas grunhentas, maritacas gritadeiras, que avoavam em bando no tempo das jabuticabas amadurecerem.

Zé era feliz e bem o sabia. Nestes tempos de pandemia vivia sossegado numa rocinha distante.

Quando era preciso ir à cidade fazia a contragosto. Não se dava bem com amontoados de pessoas, apressados cidadãos, naquela azáfama do cotidiano.

Quando o caminhão leiteiro buzinava no alto do morro, era quase hora do almoço, lá ia o feliz Zé, na sua carroça puxada pela mula de estimação.

Diziam, nos arrabaldes, que Zé com ela tinha um caso. Se não era amor seria pura paixão.

E como reluzia o pelo da velha mula branca. Era tratada a pão de ló.

Naquele dia de semana, lembrado sem muita saudade, Zé teve de ir à cidade.

O caminhão leiteiro estava cheio pelas beiradas. Não pôde lhe dar carona. Como das vezes passadas.

Foi aí que Zé decidiu encilhar a velha mula. Aquela era a primeira vez que acontecia.

A viagem até a cidade durou quase três horas inteiras. Não chovia há meses. Ambos comeram poeira.

Uma vez chegados ao centro da comunidade, a porta de um supermercado, Zé amarrou a mula a um poste de luz. Não havia estacionamento para os animais.

Adentrou ao estabelecimento preocupado com o bem estar da sua montaria. Pediu a um garoto, que tentava vender balas perto dali, que cuidasse da sua mula. Pagou em espécie a quantia de vinte reais para que o moleque não se desgrudasse do animal.

Feitas as compras, com o carrinho cheio, pagou a vista quase quatrocentos reais, e dali saiu procurando a mula de estimação.

Nada de encontrar a sua querida Jurubeba. Era este o nome dado a sua querida amada amante.

Deu parte na delegacia.  O delegado mal fez caso da sua queixa.  A velha mula não tinha fotos. Muito menos documentos.

Procurou pela cidade inteira. O tal moleque decerto afanou-lhe o pertence. E passou adiante a encomenda.

Zé da Mula voltou à roça desconsolado. Nunca mais soube notícias da mula amada.

Durante a noite, contando estrelas, Zé não conseguiu fechar os olhos. Passou a noite em claro. Embora tenha sido uma noite escura.

A partir de então o infeliz Zé jurou, ou melhor, desconjurou, que aquela foi a última vez que foi à cidade.

Ontem percebi um enterro descendo a rua de baixo. Perguntei a um passante quem seria o defunto. E ele me respondeu que era um tal de Zé da Mula. Que veio a falecer de saudade.

E, infelizmente, o amigo Zé teve de voltar à cidade. Por motivos alheios a sua vontade.

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