Não podia ser melhor

Que manhã linda amanheceu nesta manhã de outubro.

Céu, embora cinzento, chovera durante a noite, ensejava um dia claro.

A chuva tão esperada caíra durante a madrugada. Enverdejando os campos.

Depois de uma estiagem prolongada enfim a chuva caiu. Em pingos grossos. Sem, no entanto, causar estragos por onde passou.

Valtinho, gente da roça, acostumado a sofrer sem mostrar na face, sempre sorrindo mesmo frente às adversidades, naquela manhã fresca, com a terra molhada, acordou cedo como de costume.

Abriu a janela do quarto. Olhou para o lado de fora. Estava uma manhã linda. O relógio mostrava exatamente cinco e meia.

Esfregou os olhos sonolentos. Foi ao banheiro lavar a face. Penteou o que restava dos cabelos. Uma calva luzidia brilhava a exemplo do seu sorriso mostrando uma banguelice um mil e um.

Valtinho morava só. Aos quarenta e cinco anos, recém-completados naquele dia, percebeu, no sorriso iluminado do sol, que era feliz e nem o sabia.

Amava a simplicidade da vida que levava. Tinha por companhia o mugido apetitoso das vacas. O balir faminto das cabras. O cantar frenético das maritacas. O latir amistoso dos seus cães. Até mesmo o grunhir dos porcos o fazia feliz.

O trabalho duro da roça não lhe metia medo. Desde pequeno ajudava ao pai a ordenhar a vacada. A carpir a roça de milho. A esperar o tempo de as jabuticabas madurarem. Repartia com os marimbondos o sumo doce daquelas frutinhas pretinhas. Era uma pra ele. E as outras pra os marimbondos.

Valtinho, naquela vidinha singela, vivia a esparramar amizade. Era reconhecido nos arrabaldes por seu gênio bom. Nunca se o viu amargurado. Infeliz, atormentado.

Naquela manhã, era mês de outubro, quase em seu final, passei pela roça do Valtinho.

Havia chovido de véspera. A terra molhada, a pastaria enverdecida, um barrinho grudento quase fez atolar minha caminhonetinha prateada.

Saltei defronte a sua casa. Estacionei a minha caminhonetinha defronte a porteira.

Valtinho não estava em casa. Procurei-o por toda parte.

Fui ao curral a ver se ali ele estava. Debalde foram as minhas tentativas.

Num ímpeto voltei os olhos em direção aos pés de jabuticabas. E lá estava o Valtinho. Trepado num galho mais alto.

Esperei alguns minutos observando aquela cena idílica.

Valtinho, aos seus mais de quarenta anos, mais parecia um menino.

Meia hora depois ele desceu da jabuticabeira.

Com a calça toda suja. Cuspindo caroços daquela frutinha madura como ele era.

Proseamos juntos até a hora do almoço.

Assentados a um banquinho improvisado. Era um caixotinho tosco. O mesmo feito para ordenhar as vacas.

Valtinho, com o mesmo sorriso faltando quase todos os dentes, agradeceu-me a visita.

Disse-me, com aquela alegria costumeira: “bendita chuva criadeira. Que ela continue a tarde inteira. Que ela perdure por toda a primavera. Até chegar o verão”.

Eu quase não retruquei. Pensando nos problemas da cidade. Nas contas a pagar. Na infelicidade das gentes nestes tempos difíceis. Na tal pandemia que tem dizimado vidas. Na crise que se manifesta em cada esquina.

Valtinho, com aquele sorrisão maroto, uma vez em baixo do pé de jabuticaba, antevendo a minha insatisfação, um átimo tentou me consolar com esta frase singela.

“A minha vida se melhorar piora. Ela não podia ser melhor.”

Despedi-me do amigo Valtinho um tanto quanto aliviado. A vida sorri pra gente com a mesma capacidade de entendimento. Pra uns ela se mostra turva. Pra outros nem tudo está perdido.

Basta encará-la do mesmo jeito do amigo Valtinho.

Se não existem jabuticabas na dobra do caminho por que não admirarmos as azaleias floridas?

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