Não doeu nadinha de nada

Era esta a expressão que usava nos velhos tempos de minha infância.

Quantas vezes era espetado por uma agulha rombuda. Nas nádegas, deitado no colo do espetador, fechava os olhinhos, dentes crispados pelo temor, e de minha boca se ouvia um gritinho de dor.

Uma vez vacinado, na intenção de me fazer de corajoso, era pura balela, dizia a minha mãezinha, que do lado assistia: “não doeu nadinha de nada”.

E deixava o postinho de vacinação todo garboso. Ostentando nas nádegas um curativo feito na hora. Chupando um pirulito gostoso. Presente da confiável enfermeira daquele postinho do qual me lembro com saudades.

Os tempos mudaram. Aquele garoto traquinas cresceu.

Hoje não tenho mais aquele caderninho de vacinação. Uma marca apenas permanece no meu braço direito. Sinal dos tempos. Dos velhos anos que não voltam mais.

Já hoje, quando ia ao velho postinho, acredito ser o mesmo dos tempos de menino, lembro-me, olhos rasos d’água, não apenas da minha querida mãe. Ela hoje mora no céu. Acredito, piamente, que ela leciona aos anjinhos. Usando um quadro negro tinto com as cores da saudade.

Agora, aposentado da saúde pública, não da medicina, ainda pretendo continuar anos a fio, se a saúde me permitir, não mais frequento aquela unidade de saúde. Embora sinta saudade dos atendimentos, deixo aquela mesa vazia a outros médicos mais jovens.

Estamos em plena pandemia. A tão esperada vacina está sendo aplicada pais afora.

Pessoas aguardam ansiosamente a esperada vez de receberem a vacina.

Talvez ela seja o inicio de uma vida nova. Sem mortes, sem internações, sem sofrimento.

Quem sabe a crise seja domada. As lojas recomecem a vender seus produtos. E todas as pessoas se sintam confortáveis para retomar a vida.

O mês de janeiro, quase agonizante, neste dia lindo, no país inteiro filas se formam.

A esperada vacina esta sendo distribuída por ordem de prioridades.

Em primeiro lugar os profissionais de saúde. Os mais velhos. Aqueles que apresentam comorbidades.

Milhares de pessoas já foram vacinadas. Ainda faltam muitas.

Quem sabe, de agora a alguns dias, o país inteiro vai se ver livre da tal doença fatídica.

E recomeçaremos vida nova. Para podermos sair às ruas de cara limpa. Sem as inoportunas máscaras.

Ontem fui convocado pra receber a tal vacina. Foi nas dependências do meu hospital.

Era por volta das sete da noite. Enfermeiros, funcionários, médicos, todos ansiosos para serem vacinados.

Enfim chegou a minha vez.

Foi quando me lembrei dos velhos tempos. Não foi preciso abaixar as calças. Nem expor minhas nádegas.

Foi uma picadinha no braço esquerdo. Que não durou mais que um segundo. A enfermeira sorriu ao meu destemor.

A ela afirmei, sorrindo como daquela vez, quando ia aquele postinho de saúde, acompanhado de minha querida mãe: “não doeu nadinha de nada”.

Pena que não ganhei um pirulito. E muito menos um beijo da minha mãe.

Deixe uma resposta