Pra ele era o começo do fim

Muitas vezes observei, na minha vida de médico, que quando um paciente experimenta uma ligeira melhora, fugaz como a florada dos ipês, logo a morte vem, sem dizer a hora, sem mandar recado, sorrateiramente, como lhe convém.

Trata-se de uma melhora como se fosse uma despedida. Uma vez, durante uma visita ao CTI, preocupado com um amigo, que ali esteve internado, para se restabelecer de uma operação arriscada, ele olhou pra mim, com olhos marejados de lágrimas, sorriu em minha direção, e, em alguns segundos apenas voltou a fechar os olhos, e dormiu para sempre, pra nunca mais acordar novamente. Foi uma melhora efêmera. Que traduz, em minha opinião, uma despedida da vida, para viver outra vida, num local encantado, quiçá além da azulice do céu, por detrás daquelas nuvens escuras, não num céu puramente azul, como se mostra no dia de hoje, vinte e três de julho.

Foi quando me lembrei de um amigo velho. Seu nome era Tião do Cervo.

Oriundo de uma rocinha encantada, pertinho da minha, no município de Ijaci.

Nossos pastos eram divididos por um ribeirãozinho de águas serelepes, que corriam entre pedrinhas claras, povoados de lambarizinhos de rabinhos vermelhos, que, quando se descuidavam eram pescados para servirem de petiscos à hora do almoço.

Seu Tião produzia verduras numa horta imensa. Não eram para venda. E sim para oferecer aos amigos que por ali passavam.

Geralmente ia à cavalo. E voltava ao meu pedaço de chão com o saco lotado de beterrabas, jilós colhidos na hora, mandiocas que se desmanchavam a menor fervura, e outras iguarias que só feiras livres bem administradas poderiam produzir.

Nossa amizade durou até o dia de sua partida. E hoje nossas terras foram divididas por um lago imenso, chamado de represa do Funil. Todos que o conheciam tinham por ele uma enorme admiração. Não apenas pela candura de sua alma. Como também pela grandeza de seu coração.

Foi como se um punhal ensartado dentro do peito que ouvi a notícia de sua enfermidade. O velho amigo Tião estava internado no mesmo hospital onde sempre trabalhei. A grande Santa Casa, cada vez mais moderna e atuante na comunidade.

Assim que voltei à cidade logo fui saber notícias do velho Tião. Ele estava internado na unidade de tratamento intensivo. Recuperando-se de uma obstrução intestinal. Pelo médico que o operou soube que o seu estado inspirava cuidados. Que era delicada a sua situação.

Ao chegar aquele leito, separado dos demais por um biombo, deparei-me com um ser moribundo. Seus olhos semiabertos olhavam pro nada. Sua face inexpressiva era indiferente ao meio ambiente.

Tentei tirá-lo daquela letargia. O amigo Tião abriu os olhos, baços, inexpressivos, e fixou os olhos na minha direção.

Ainda me lembro dele quando ia visitá-lo, naquela rocinha que até hoje faz divisas com a minha. Com seu sorriso doce. Com aquela calma peculiar das pessoas de bem.

Como a vida nos presenteia com bons e maus momentos. Como ela nos trata de formas diferentes.

Num minuto apenas o amigo Tião abriu os olhos fixos em mim.

Pensei ter tirado deles um sorriso amargo. Não com a mesma doçura de suas beterrabas.

Aquele foi seu derradeiro sorriso. O velho amigo Tião se despediu da vida segurando a minha mão.

Pra ele aquele derradeiro sorriso foi o começo do fim.

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