O homem que postergava

Hoje amanheceu um dia típico de verão.

Céu azul, sol brilhando em intensidade máxima, um calor prematuro, imagine como vai esquentar no decorrer da tarde, nenhuma nuvenzinha a indicar a presença de chuva, pode ser que esteja equivocado.

Prefiro acordar cedo a esperar, na cama, que o calor aumente. Vou logo ao banheiro. Passo uma água fria na minha cara sonolenta. Deixou meu pijama aos pés da cama. Visto a roupa dependurada no cabide. A mesma de ontem. E deixo o apartamento antes das seis e meia.

Encontro o prédio ainda vazio. Dou bom dia ao porteiro que acorda ainda mais cedo do que eu. Seu Zito, antes retireiro madrugão, adora fazer pilhérias sobre vacas e a vida na roça. Imagino que ele sente saudades daquela vidinha mansa. Da qual se despediu faz tempo.

Nos dias de hoje percebo, nos seus chistes, uma nostalgia ainda insepulta de quando ele vivia naquele pedaço de pasto sujo, a carpir o mato, a roçar a pastaria, a ordenhar a vacada, que suspirava mugindo de saudade de quando suas crias permaneciam no bezerreiro depois da primeira mamada da manhã.

Não sou de deixar pra depois o que tenho de fazer agora. Sempre fui assim.

Faz parte de minha índole enfrentar a onça antes que ela me ataque.

Se tenho de acordar cedo porque retardar a manhã? Tenho pela noite uma verdadeira ojeriza. Dizem que velho acorda cedo para ficar mais tempo à toa. No meu caso não é bem assim.

Ainda estou longe da aposentadoria. Embora já afastado do serviço público tenho um consultório ainda recheado de pacientes. Embora tenha reduzido meu horário de trabalho, agora, depois de quase cinquenta anos de graduado, dou-me ao desfrute de cuidar da minha saúde. Exercito-me  ao cair das tardes. Sempre caminho. Corro de quando em vez na esteira da academia do velho clube. Nado como um pato sem asas.

Não sei quanto tempo faz, creio que há um mês passado, procurou-me no consultório um velho paciente.

Seu Joaquim aqui aparecia de tempos em tempos. Vinha de supetão. Sem agendar consulta.

Estava acostumado ao seu modo de ser.

O motivo de sua vinda era sempre o mesmo. Fazer uma avaliação costumeira de como ia a sua próstata.

A consulta não durava mais que meia hora. Uma vez feito o toque, sem retoque, ele pedia que indicasse os exames de rotina. E assim ia vivendo. As suas queixas eram as mesmas. Dificuldade em verter urina. Durante a noite quase não dormia. Lotava um velho urinol que morava debaixo da cama. Segundo o próprio a urina era da mesma cor de sempre. Não cheirava mal. Nem tinha a cor amarelada própria de uma infecção.

Segundo o que ele me contava, durante a consulta, nunca a urina empacou de vez. Sentia apenas um desconforto por cima da bexiga.

Naquela derradeira vez que ele me visitou percebi um abaulamento progressivo na sua região pélvica. Seria uma retenção urinária incipiente? Um indício seguro de que sua bexiga estaria em vias de esgotamento?

Naquela tarde ensolarada, depois dos exames feitos, não tive outra opção a não ser indicar a cirurgia da próstata hipertrofiada. Felizmente era uma doença benigna. Fácil de se curar.

Mais uma vez aquele velho paciente acabou postergando a operação. Disse-me que voltaria noutra data. O que acabou não acontecendo. Anos depois Seu Joaquim reapareceu. Com ares de arrependimento. Ele não se operou como previsto.

Agora, portando uma velha sonda enfiada na uretra, entupida desde a noite de trasanteontem, quase nada pude fazer.

Ele foi condenado a usar sonda em definitivo. Já que suas condições cirúrgicas passaram a ser de alto risco.

Tempos depois de novo Seu Joaquim reapareceu. Esquálido, em estágio final, sofrendo todas as dores do mundo.

Aquele velho homem, que sempre postergava o tratamento, desapareceu de vez dos meus olhos. Soube noticias dele durante o velório.

Deixe uma resposta