Aquele baixinho notável

Poucas vezes relutei tanto em deixar a cama neste dia frio, chuviscoso, sombrio, pouco iluminado, como nesta terça-feira dezessete de maio.

A noite como sempre curta. Entremeada de pensamentos noctívagos, a maior parte deles inerentes ao passado.

Infelizmente não tenho como me desvencilhar dele. Ele gruda em mim como uma tatuagem imaginária.

Vivo o presente. Pensando no que ficou para trás. O futuro pra mim é incerto. Daí a minha predileção em cultivar saudades. Assim como minha avozinha materna, a querida dona Belica, costumava cultivar rosas amarelas em seu jardim suspenso. Onde hoje se mostra aquele prédio que meu pai edificou. Batizado com o nome do meu avô Rodartino Rodarte.

Ainda me lembro bem dele.

De baixa estatura. Em contraste com o seu conceito de elevada envergadura moral.

Já hoje, naqueles dois lotes vazios, um olha pro outro. Quando naquele espaço haviam duas moradas. Duas casas coligadas. Ombreadas lado a lado.

Na casa de cima moravam meus pais. Na de baixo outra familia, aparentada, outros Rodartes eram meus vizinhos.

Aquela rua, de tantas lembranças ternas, foi onde passei a minha infância perdida. Cujos anos não voltam mais.

Aquele baixinho notável, emérito causídico de causas perdidas e ganhas, não tinha o costume de cobrar honorários. Ele viveu a vida inteira pelos outros. Tinha um coração generoso. E uma bondade imensa. Assaz reconhecida por todos aqueles que com ele conviveram.

Ele foi meu primeiro prefaciador.

Quando passava por sua casa, à hora do almoço, levando textos novinhos numa pasta recheada de escritos, ainda me lembro da preguiça com que ele passava os olhos sonolentos pelas minhas crônicas. E costumava rabiscar não corrigendas. E sim alterações feitas por ele mesmo. Com ideias próprias. As quais por vezes não apreciava. Mas fingia que sim.

No seu prefácio, num dos livros que editei, foi o segundo da minha lavra, ele assim se manifestou: “não me é difícil prefaciar o novo livro do autor de “À sombra dos ipês contestações e devaneios”, porque o mesmo é fruto do ventre da minha querida irmã Rute e semente do saudoso amigo e colega Paulo José de Abreu. Também porque com ele convivo desde seu nascimento em Boa Esperança presenciando seu crescimento e o desenrolar do seu destino.

Suas crônicas não têm, por base, a utopia, a irrealidade, a visão estrábica dos fatos. Elas retratam o cotidiano, arrimando-se e mesclando, ao mesmo tempo, o lado social, ora o drama, vez por outra a comédia e o pitoresco, não esquecendo, nunca, também o lado politico, este no sentido exato da palavra.

Confesso, porém, que para mim foi uma surpresa o enveredamento do meu sobrinho no campo das letras. Pois sempre pensei que o médico, profissional que lida com os dois extremos supinamente antagônicos, vida que leva a morte, dois pontos incomunicáveis, materializados, jamais viesse a se tornar um lidador das letras. Até mesmo porque a genética, no caso, foi invertida, uma vez que o subordinado antecedeu o principal. Pois sua filha Bárbara, antes dele, trouxe à lume a obra “Amarguras”, verdadeiro relicário de admiráveis poemas.

Lamento, porém, que o autor, em uma de suas crônicas, sempre vestida naquele estilo claro e realista, tenha afirmado, que esta obra que tenho a honra de prefaciar, será seu canto do cisne na literatura, ele, atirar ao lixo toda a sua inspiração e competência. Ele que, ao invés de mim, que tenho anos e anos de vida passados e pouca vida pela frente, tem um longo e promissor futuro, não deveria, jamais, aposentar os enredos que traduzem suas belas e deliciosas crônicas”.

Meu saudoso tio deixou-nos, à sua ausência, uma lacuna enorme. Ainda me lembro dele deixando a sauna do LTC, o mesmo clube o qual frequento, trajando tão somente uma toalhinha diminuta e encobrir aquele corpinho quase desvestido de gordura. Que por vezes caía ao atravessar a rua.

Ainda me recordo daquele baixinho notável a recitar Castro Alves no seu Navio Negreiro. Da mesma forma me lembro dele nas suas defesas no tribunal do júri. Da sua oratória passada adiante ao seu sucessor Negis Rodarte.

Meu tio um dia se foi. Deixou órfã sua amada esposa, tia Sonia. Seus filhos primos os quais tanto aprecio.

Ele jamais será esquecido. Pessoas como ele merecem nosso eterno reconhecimento.

Aquele notável baixinho deixou indeléveis lembranças ensartadas dentro do meu âmago.

A ele a minha reverência.

Você, meu saudoso tio, doutor Francisco Rodarte, vai estar sempre lembrado, não apenas nas palavras que deixou escritas naquele meu segundo livro, cuja capa mostra um ipê florido.

À sombra dos seus conhecimentos simplesmente vivo.

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