Chegou tarde

Essa tal pontualidade sempre fez parte da minha rotina.

Nunca deixei ninguém a esperar. Ao contrário. Chego sempre antes da hora.

Tenho por aqueles que são pontuais verdadeira e inconteste admiração.

Como exemplo tomo a minha querida parceira no trabalho.

Zaninha, desde quando ela começou, timidazinha, em substituição a sua irmã, a inesquecível Doia, morta tragicamente num acidente, nunca faltou ao serviço. Vem de longe, com aquelas canelinhas finas, como seriemas pernaltas, caminhando rapidamente, até aqui chegar, pontualmente, antes das oito. Nunca a vi se atrasar.

Tenho como exemplo pra mim a sua pontualidade. Tento chegar ao consultório sempre no mesmo horário. Não é vantagem nenhuma. Já que moro aqui pertinho. A alguns passos de distância apenas.

Caso alguém me lance aos ombros culpa maior que eu não tenho digo logo: “se eu me atrasei algum dia não me lembro de quando foi. Ou estava severamente adoentado. Ou então tenha me esquecido do compromisso não agendado”.

Coisa difícil de esquecer. Já que até no tempo presente tenho na memória muitos gigas gigantes como me oferece meu computador.

“Ei. Você chegou atrasado”! Um dia me disseram tal inverdade. Já que, ao olhar as horas tinha me adiantado cerca de dez minutos. Quem me disse tal dito acabou se desculpando. Já que ele, em verdade, era o retardatário.

Como tem feito frio nestes dias de maio.

A temperatura quase me faz enregelar. Se bem que por sorte tenho bons agasalhos. Saio de casa encapotado. Deixando apenas o nariz de fora. E a boca por onde tento respirar.

Nestes dias frios tenho assistido, pela mídia, a pessoas dormindo ao relento. São Paulo, a cidade mais populosa do país, tida como a mais rica, é um exemplo em preto e branco da minha assertiva.

Como pode, neste país tão dispare, conviver com estas desigualdades?

Não consigo imaginar, ao mesmo tempo, pessoas sem teto, sem comida, sem emprego que lhes dê sustento, passando necessidades, dormindo nas grandes cidades enroladas em míseros cobertores, mendigando benesses de terceiros, a espera da felicidade de ter uma casa onde morar, sem que esta sua vontade jamais tenha guarida.

Não sei como conviver entre luxo e pobreza extrema. Melhor seria se estas desigualdades não afrontassem tanto os nossos olhos. Se nossos conterrâneos tivessem pelo menos um teto onde se agasalhar nestes dias tão frios.

Hoje, nesse dezenove do mês de maio, a temperatura desaba. O vento ainda não deu as caras. Aqui dentro, da minha oficina de trabalho, de janelas fechadas, o ambiente me conforta.

Aqui pertinho, do meu lado direito, peixinhos aquarianos penso não sentirem tanto frio. Só que eles não se queixam. Nadam a espera da ração que foi despejada ainda pouco.

Na noite de ontem, talvez tenha sido noutro dia, assisti, pelo noticiário das vinte e uma horas, uma entrevista de um repórter a um morador de rua. Em situação de rua talvez seja de melhor alvitre.

Este repórter, de uma TV qualquer, mostrava a situação calamitosa por que passam tais pessoas sem eira nem beira.

Era ainda jovem o entrevistado. Mostrava na face sinais de desalento. Era oriundo de um estado mais ao norte.

Aportou em São Paulo esperando conseguir emprego. Foram debaldes as tentativas.

Pedro, conforme se apresentou, morava na rua há meses atrás. Alimentava-se com as sobras que encontrava no lixo. Na maior parte das vezes passava fome.

Ele dormia debaixo de um viaduto. Molhava-se quando chovia. Sentia frio durante os meses frios.

Naquela noite, quando a temperatura desabava como uma rocha descendo a encosta o jovem Pedro não conseguiu dormir. Perambulava a esmo pelas ruas. Não se lembrava de quando conseguiu comer alguma coisa naquele dia.

Ao seu lado dividia a moradia improvisada com um colega de infortúnio. Jovem como ele. Desempregado como milhares de brasileiros.

Ao acordar, sem ter dormido, notou que seu amigo encontrava-se gelado. Sem respirar. Recolhido entre suas cobertas. Mal se lhe podia ver o rosto.

Ao chegar o socorro já era tarde. Aquele amigo, sem teto, sem afeto, sem família, morrera durante a noite fria.

Quando tentaram acudi-lo já era tarde.

Este é o destino de tantos quantos vivem pelas ruas. Que infelizmente engrossam as estatísticas por aqui e por acolá.

Desta vez chegaram tarde. Antes fossem mais pontuais. E não permitissem tanta disparidade. Num país que tudo tinha para dar certo. E, no entanto, continua a navegar em águas turbulentas.

 

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