Em termos

Nunca se pode responder com um sonoro sim ou um deslavado não.

Em tudo cabe uma resposta intermediária. Nem tanto sim muito menos um não.

Tenho um amigo, já bem vivido, ele nunca me permitiu chamá-lo de velho, sempre retruca com a mesma resposta: “velho é aquele sapato furado na sola. Sem chance de ser remendado. Já encostado. Velhusco. Carcomido pelas traças e cupins. Sou simplesmente experimentado. Pode me chamar de tudo. Idoso, sênior,  bem rodado, ainda capaz de fazer tudo que fazia dantes. Ainda melhor. Pois, com a experiência acumulada, com as horas amontoadas, com tudo que aprendi vida afora, ainda me permito viver como vivia antes. Pois para mim o que conta não são os anos vividos. E sim a capacidade de passar aos mais jovens o meu intenso aprendizado”.

Não tenho como não concordar com meu dileto amigo.

Quando saio às ruas, pois não me contento em ficar confinado, mesmo durante o auge da pandemia, de vez em sempre me perguntam: “ doutor. O senhor já se aposentou, né”?

E eu respondo logo: “ em termos”.

Essa resposta tem suas explicações.

Do serviço público estou jubilado. Não mais faço parte dos funcionários de unidades de saúde tanto estaduais quanto municipais. Não mais tenho a obrigação de bater ponto. Recebo uma miséria como aposentadoria. Se tivesse de sobreviver às custas do que ganho como aposentado passaria necessidades. O médico não tem esse direito. Quem assina a sua aposentadoria por completo são os pacientes. Ainda estou apto a desempenhar tudo que fazia antes. Com igual destreza. Ainda melhor. Pois aprendi, com estes anos todos de dedicação à medicina, que não se deve tratar a doença. E sim o  paciente que nos procura.

A aposentaria, na extensão exata do seu significado, é melhor explicada como sendo a inatividade completa. A época que nos permite ficar assentado a um banco da praça. A esperar que a noite caia. Não precisar acordar cedo. Embora o velho tenha o sono curto. Tomar não se sabe quantas conduções para chegar ao trabalho. Ser dispensado de lutar contra as adversidades. Muito embora ainda tenha capacidade de trabalhar como dantes. Aposentado em geral passa horas vazias sem compromisso de chegar a algum lugar. O máximo que se permite é não ver chegada a hora de ser levado a um campo santo. Sem poder dizer que parem o caixão. Pois ainda vivo.

Nunca me aposentarei do convívio fraterno dos amigos chegados. Pois eles me são caros.

Jamais me aposentarei de saltar da cama quando a madrugada  chega. De admirar o sol nascer. A lua aparecer. As estrelas brilharem lá no alto.

Nunca estarei aposentado por completo. O trabalho ainda me completa. Como meu pai dizia: “ o ócio é o começo do fim”.

Quando alguém me perguntar se já estou aposentado, vou poder dizer: “ em termos”.

E, na hora exata em que me aposentar por completo, não mais ser capaz de caminhar, correr quando a ocasião permite, ficar desprovido de tirocínio, não saber identicar cores, sabores, jogado a um leito de hospital, sendo incapaz de dizer não, ou sim, aí, ai sim, que me alijem de mim.

Podem dizer que já me aposentei por completo quando as doenças me impedirem de caminhar livremente. Quando não mais for capaz de agradecer. Ou de corresponder aos anseios que esperam de mim.

Agora, prestes a completar setenta e três anos, em dezembro que se avizinha, não tenho a intenção de me aposentar nunquinha.

A não ser que minha vontade não prevaleça. Que meu desejo de não continuar na lida fale mais forte.

Enquanto meu coração continuar a pulsar, meus neurônios pulularem de um lado pro outro, enquanto minha inspiração pulsar, pretendo continuar como estou.

De vez em quando me indagam: “doutor. O senhor já se aposentou. Né”?

Logo vem a reposta: “ em termos”.

E dispenso assinaturas que comprovem o contrário.

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