Confesso certo enfado

A segunda amanheceu como de sempre.

É outono.

Um frescume do ar acalenta-nos a começar um novo dia. O sol brilha forte. Nenhuminha nuvem tapa a boca do sol. Tudo indica que o resto do dia vai ser assim.

A noite foi curta. Sucedida de um domingo igual aos outros. Com a mesma sensação de vazio. Sem nada de interessante a acontecer.

Como de rotina tenho o sono leve. Embora meu corpo pesado tente descansar após uma semana inteira de trabalho rotineiro.

Acordo ao despertar da aurora. Poucas pessoas vizinhas deixam suas casas a mesma hora.

Tento chegar ao consultório antes das sete da manhã. O trajeto de onde moro a minha oficina de trabalho dura menos de dez minutos. Se tanto.

Um banho quente me faz lembrar que a semana começa. Igualzinha a outras.

Segundas, terças, quartas- feiras, depois quintas, sextas, os sábados se repetem. Bem sei que o domingo vai seguir a rotina de outros iguais.

Estamos em maio. Quase ao seu começo. No próximo domingo cai no dia das mães. E não tenho mais a minha para abraçar com o mesmo carinho de dantes. Só me restam outras mães. Minha esposa, minha filhota querida e as mães alheias. As quais desejo feliz domingo vindouro.

De agora a cerca de três horas parto em direção a outro trabalho. Sempre caminhando. Como meu fone de ouvido ligado.

Ali tento ajudar aos menos aquinhoados. Por mais que tente nada mais faço do que prescrever fármacos que tentam ajudar aos pacientes a enfrentarem sua dura rotina. Embora saiba das dificuldades que as pessoas que ali esperam pacienciosamente. Sabedor das limitações do sistema de saúde público carente que nosso país oferece.

Retorno ao consultório na mesma pontualidade de sempre. Por volta da volta das treze horas.

Novamente atendo aos consultantes. De vez em quando, agora mais raramente, passo pelo hospital para cirurgias maiores. Antes operava bem mais. Agora o escritor toma conta das minhas manhãs, antes das oito.

Tento manter-me em forma. Afinal são mais de sessenta e oito anos na mesma rotina. Por vezes enfadonha.

Antes que as tardes se transformem em noites vou à academia. Perto de minha casa em criança. Lá faço uma visitinha à querida Rosinha. Ela é que resta da saudade dos meus pais.

Tento manter-me alegre. Embora saiba que os instantes de felicidade sejam tão fugazes quanto a florada dos ipês.

Antes de voltar a casa, de onde saí bem cedo, quase madrugada, passo pela casa do meu netinho. É ele quem me faz voltar aos bons tempos de outrora. Quando me sentia menino.

Agora já são quase sete e meia. Ainda me resta mais de meia hora para despertar o médico que ainda vive dentro de mim.

A vida seria insuportável não fossem pelas mudanças. Mas por mais que tente elas não são tanto corriqueiras assim.

Amanhã o ciclo se repete. Depois de depois de amanhã vai ser novamente igual.

Acordei nesta segunda-feira com um sabor amargo dentro de mim. Tomara noutros dias o mesmo não se repita.

Agora o sol brilha forte. Lá fora. Já que aqui dentro a mesma claridade não toma conta do meu interior.

Confesso certo enfado dentro do meu âmago. Seria devido a idade? Todo meu íntimo, por mais que deseje mudar o status quo, continua do mesmo jeito. Talvez seja devido ao cansaço que brota dentro de mim.

 

 

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