Inda menino, brincalhão, sem ainda demonstrar as preocupações de então, nada de contas no banco, de pagar uma ou outra prestação, o tal boleto ficava apenas na minha fértil imaginação, o imposto de renda, pobrezinho, só era motivo de descabelo das pessoas mais velhas, os contadores sorriam de orelha a orelha ao chegar o tempo de prestar contas ao leão, via de regra faminto, raivoso, o cheque amarelo, quase sempre sem fundo, do banco de nome do meu país, os tais que a máquinas caça- níqueis sonegam em de elas sair, já que os pré-datados se perdiam de vista, eu, criança traquina, costumava no pequeno jardim da minha casa avarandada da Rua Costa Pereira, que inda hoje existe, apenas ali não moram meus pais, edificar casas de papelão, ou de outro material qualquer, feitas de caixotes toscos, de tábuas de material aglomerado, abandonados em espaços baldios, quando existia uma árvore de rica copa na vizinhança, ali construía minha casa de Tarzan, nem sei quem era a Jane, talvez fosse a minha querida esposa de hoje, mulher de fibra, valente, guerreira, que de vez em quando peleja contra mim, na intenção pura e singela de mostrar quem manda em casa. Certo que se trata dela. Pois eu, submisso, mas não omisso, quando dela parte uma ordem faço-lhe reverência, bato continência, e me dobro a sua vontade férrea, mais dura que rapadura cujo melado passou do ponto.
E como ficavam lindas as tais casinhas do faz de conta! Nelas brincava só, ou acompanhado pela saudade dos meus avós, pois meus pais pouco tempo dispunham para folgar comigo, no máximo quando meu querido pai chegava do banco onde trabalhava com afinco ali passava minutos, pois tinha de almoçar apressado, a fim de ir ao segundo tempo, na parte da tarde, a fim de cumprir com galhardia a tarefa que nos propiciava uma vida confortável, sem luxo ou exagero, mas a despensa da minha casa nunca ficava vazia.
As casas feitas de materiais quaisqueres, fossem de papelão, ou de madeira leve, ainda povoam líricas o que restou de mim criança, agora apenas um velho. Se deixo a barba crescer me confundem ao Papai Noel, e se a aparo rente fico com cara de menininho levado, careca como bola de bilhar, mais dura ainda, se possível fosse.
Hoje, graças, em parte, o que me deixou de herança meu saudoso pai, alguns aluguéis que me ajudam a suprir a renda que a medicina ainda me traz, nos tempos idos era mais, consigo viver numa casa confortável, num lugar extremamente aprazível e saudável, graças ao bom Deus que nunca me tem faltado, momentos intranquilos quem não os têm?
Mas, como sempre ando pelas próprias pernas, o carro permanece à sombra da seringueira, do condomínio de onde não pretendo me mudar, a não ser para um lugar melhor, quem sabe o cemitério, no mesmo jazigo onde descansam os restos mortais dos meus pais e aparentados, no dia de hoje, dezessete de março, sexta-feira de sol, sem sombra de chuva até agora presente, bom lembrar que a chuva é um presente a boa gente da roça, que recém plantou a safrinha de milho, a espera de dar boas espigas, ao passar pela praça central, logradouro de maior apelo turístico da minha querida Lavras, observei, olhos atentos, um jovem, quase sempre descamisado, recém-chegado a minha amada terra, acordando no meio da relva do jardim.
Ele passou a noite no meio de uma casinha feita de folhas de papelão. Um amontoado deles, muito parecido a minha casa de Tarzan, que ainda me povoa os sonhos pueris.
Talvez ele não me tenha percebido. Passei rápido pelo canteiro central da Praça Augusto Silva, lugar onde pessoas ficam horas vazias, tanto a jogarem dama, quanto perdidas em prosas amistosas, tratando de negócios, esperando a hora dos bancos se abrirem ou, no calor da parte da tarde, sorvendo picolés e sorvetes em sorveterias espalhadas do lado direito de quem desce.
Agora, quase hora de o escritor se transmutar em profissional da medicina, é perto de oito da manhã, o jovem, que passou a noite na praça, em sua casa de papelão já deve ter acordado. Talvez tenha tomado café em alguma padaria das cercanias. E ido embora, para mais acima, tentar a sorte que não lhe tem sorrido, como sorri para mim, quase sempre. E tomara continue da mesma forma, não apenas para mim, e sim para todos os necessitados, como o jovem sem teto, sem afeto, que dormita numa casa de papelão feita com os restos das sobras de alguma loja qualquer.
O jovem que me inspirou esse escrito, retrato em preto e branco de um Brasil em crise evidente, junto a outros príncipes sem sorte, de fato, em verdade, mostra um quadro preocupante.
Tomara que a situação de penúria por que ele passa, logo passe. E, também tomara, oxalá, que não seja este o futuro do meu querido Brasil…