Ontem, dias atrás, tenho visto um jovem sem teto dormindo ao relento.
Tem a cor parda, cabelos em desalinho, pés descalços, não incomoda a ninguém. Uma vez apenas, e foi só, percebi que ele discutia, educadamente, com a moça do caixa de uma padaria logo defronte à igreja principal, onde por vezes faço meu desjejum frugal. Ele argumentava que havia pago uma caixa de fósforos, instrumento que usa para acender o cigarro, companhia indispensável aos seus lábios queimados de sol. Por fim acordaram sobre quem havia pago ou deixado de pagar. Foi a primeira e derradeira ocasião que o percebi querelar com alguma pessoa, comigo jamais.
O jovem, do qual hoje aprendi o nome, ele se chama Bruno, não sei das quantas, dormita, pouco, segundo ele mesmo me afiançou, debaixo da marquise onde os médicos da Santa Casa estacionam os veículos, eu não tenho este problema, pois sempre me locomovo pelas minhas próprias pernas em eterno movimento, não preciso pará-las em algum logradouro fora do meu consultório, pois sempre as tenho junto a mim.
Agora, inda pouco, parei para conversar com o jovem Bruno. Perguntei-lhe se tinha família, se usava drogas, se apreciava viver nas ruas, se era feliz da maneira que era. Deixei-lhe uma moeda das gordas na palma da sua mão. Sem que ele me pedisse para assim fazê-lo, ele não tinha o costume de esmolar, coisa mais difícil que um ser humano tem de se submeter.
Afastado do garoto Bruno, aquele jovem que perambula nas imediações da Santa Casa, sem destino certo, me indago a mim mesmo: de quem seria a culpa de tantos e tantos pedintes, sem- teto, dormirem ao relento, enquanto nós, os mais bem aquinhoados pela sorte vivemos em casas confortáveis, quartos amplos, bons cômodos de banhos, cozinhas e despensas quase sempre fornidas de alimento, salas de televisão dotadas de todos os recursos que a informática nos traz, assombrados que estamos com tantas e tantas modernidades, nos acostumamos tanto a elas, que não sabemos viver sem as suas tutelas inteligentes. Que tanto podem nos tornar dependentes, como o jovem Bruno ficou das drogas nocivas, que deixam tantos outros jovens a margem da sociedade, olhos mortiços, mentes em parafuso, como robôs sem comando, teleguiados como máquinas onde faltam parafusos e com o controle remoto estragado.
É bom deixar o quase garoto Bruno de lado. Não que o tenha olvidado, mas quero continuar a tentar esclarecer minhas dúvidas sobre o tema título desta crônica de hoje. Bem cedo, antes das sete da manhã, de um dia ensolarado que se mostra do lado de fora da minha janela que tenta tapar a boca do sol, e não consegue.
Imprecisamente antes das dez da manhã, dessa quinta-feira, quase semana morta, vou exercer meu outro lado médico urologista num ambulatório de especialidade situado na zona norte da cidade. Ali atendo, via de sempre, mais de vinte pacientes, das mais distintas índoles e enfermidades. Quando mais idosos a doença é pertinente aos queixumes da glândula prostática. No caso das fêmeas o assunto diz respeito a infecções urinárias, incontinência de urina, ou um cálculo renal que provoca ou não dor, inerente a posição, tamanho, e qual o caminho ele segue, até a completa eliminação ao exterior. Os mais jovens, como o rapazola Bruno, se queixam de fimose, de doenças sexualmente transmissíveis, algo que incomoda na bolsa escrotal, ou qualquer doença da competência da Urologia, especialidade de fácil diagnóstico, e difícil tratamento, hoje em dia na quase totalidade são usadas máquinas ou instrumental dispendiosos, não acobertados via Sistema Único de Saúde, o apelidado SUS.
Quando naquele ambulatório, onde me ajudam simpáticas enfermeiras, amáveis e solidárias, muito embora fiquem meses com os salários em atraso, ao chegar à intimidade da minha salinha tosca, onde faltam recursos materiais, os humanos tento supri-los, aparece uma fimose a ser operada, uma vasectomia em pais com mais de não sei quantos filhos, os pobres não deveriam ter mais de um, um condiloma acuminado a ser cauterizado, ali não existe eletrocautério muito menos anestesia, uma varicocele causadora de esterilidade no varão, uma enorme hidrocele que incomoda, de gigante que se tornou, a locomoção do portador, qualquer procedimento cirúrgico, por mais simples que seja, eu, especialista no assunto, tenho de encaminhar o paciente a outro lugar. Nem que deseje posso a ele tratar. Meu compromisso com a saúde publica é tão somente a consulta, e nada mais.
Pensando na vida, no garoto Bruno, o drogado e sem teto, nos pacientes do sistema único de saúde (enfermo), que batem em portas fechadas, quase sempre, nas coisas tantas que entristecem a nossa alegria, em nosso cotidiano rico e pobre, ao mesmo tempo, nas soluções longe de serem encontradas, tanto no caso dos pedintes, dos menos afortunados, dos viciados em coisas ruins, nos pacientes do SUS, a vida é tão boa, pela última vez indago: “de quem é a culpa”?
A resposta não é tão simples, assim. Com a palavra nossos dirigentes. O poder executivo ou legislativo. Quem faz as leis também tem parte nesta história triste. E nós, a população, que tem o deslouvável costume de ir às ruas na intenção de protestar, depreda os bens públicos, faz arruaças, quebra-quebra, trapaceia, leva vantagem em tudo, certo? Segundo a lei de um jogador de futebol que hoje sumiu dos microfones, não o tenho visto nos programas de esporte, sobremodo o futebol.
Se disser que a culpa de tudo que foi escrito, dito e comentado, cabe uma parcela importante a cada um de nós, não falto com a verdade. Tenho escrito e dito, e não temo as represálias.