A menina moça mulher que a tristeza engoliu

Por vezes a linguagem sibilosa do vento me assusta. Hoje ele tirou férias. Partiu rumo ao desconhecido. Ao chegar ao consultório, num dia de sôfrego calor, pude entreabrir a janela. Caso assim acontecesse, num dia de ventania forte, pobres dos meus papéis. Seriam escorraçados pelo farfalhar das asas do vento, que levaria tudo ao derredor, inclusive, creio eu, a inspiração que me amarfanha a alma, fazendo dela um rebuliço como um tornado que costuma tomar-me nos braços, levando-me para longe, um longe que nem mesmo sei onde mora.

Foi neste dia, meio de semana, setembro partido ao meio, ao me levantar da cama antes que a pobre acordasse dos seus devaneios, dia este que enseja um belo dia de inverno, com jeito de verão, que pensei na vida que tenho levado.

Nesta quase aurora da minha vida os episódios felizes têm sobrepujado os de índole ruins. Aconteceram tantas coisas alvissareiras, tantos e tantos momentos felizes, que, se os fosse contar nos dedos, talvez precisasse de mais dedos, os quais tomaria por empréstimo a um amigo chegado. E caso este mesmo amigo não aparecesse, e não concordasse em emprestar-me um dedo, mesmo assim não faria caso. Acabaria por contar nos dedos que apontam em direção à felicidade.

Por falar nela, a tal de felicidade, onde, afinal, seria a residência do tal sentimento que aparece como o vento que assopra, de quando em vez desaparece, reaparecendo quando menos se espera, na dobra do caminho, na curva da estrada, no cume daquele morro empinado, por onde passei a cavalo no sábado passado.

Falando em alegria, a parenta mais próxima da felicidade, ao contrário do que muita gente pensa, a mesma felicidade tem um desafeto imediato.  Nem só de momentos felizes a gente vive. Esta alternância entre um e outro confere as cores risonhas da vida. Como as cores que se desenham no arco-íris depois de uma chuva tão esperada.

Durante a caminhada até onde estou a descrever a vida, com o tique taque dos meus dedos sobre o teclado branco do computador, passei por uma praça do centro. Por onde ando quase sempre, ouvindo o prosear apetitoso das árvores de rica copa, da relva ressequida que repudia os pés desavisados dos transeuntes, dos pássaros que por ali descansam, em sua revoada em busca de amor.

Foi naquela mesma praça do centro da cidade, que avistei, assentada dormitando num banco sem conforto, uma graciosa menina moça mulher, debruçada em seus cotovelos finos, cabeça baixa, quando mal se podia ver-lhe a face, com certeza estaria crispada dentro da infelicidade manifesta.

Passei por ela rumo a uma padaria. Onde quase sempre tomo meu desjejum frugal. Fiquei por breves momentos pensando na pessoinha triste que descobri naquela quase madrugada fresca, sem sinal de chuva no ar, desconfortavelmente debruçada em meio a sua angústia, por que não falar em preocupação, ou seria depressão, tristeza, desalento.

Meia hora depois voltei pelo mesmo caminho. Sem tirar do pensamento o caso da pobre menina moça mulher de olhar encoberto por uma névoa densa de ressentimento.

O que será que a martirizava tanto? Seria um mal de amor? Um desentendimento com a família? Uma simples crise de tristeza, melancolia? Ou seria uma desilusão com a vida, tão linda em certos momentos.  Não pude chegar a uma notória conclusão sobre o motivo que fazia daquela pobre menina moça mulher um opaco instante de infelicidade explícita.

Dias depois passei pelo mesmo espaço. As árvores centenárias ainda estavam no mesmo lugar. A relva seca pedia, mãos pro alto, que, por caridade, que a chuva despenque logo, para que a gente, grama e flores, não nos tornemos um pasto cinzento, carcomido pelo fogo.

Ao ultrapassar os limites da mesma praça, naquela hora vazia, nem os passarinhos ali faziam ponto, muito menos os desocupados amigos do ócio, de olhos atentos ao banco onde antes estava a moça mulher menina, vi, juro que não é fruto da minha imaginação imaginosa, um vulto estranho. Parei para examinar de perto aquela visão esdrúxula.

Fiquei estático por exatos cinquenta intermináveis minutos. Depois de perceber, quase sem entender a minha apreciação, vi, com enorme aflição, uma figura de menina moça mulher, mãos apoiadas no queixo, cabisbaixa, como uma estátua morta, feita de mármore frio, um fantasma triste, bastante ensimesmado dentro dele mesmo.

Era a mesma menina moça mulher, que a tristeza engoliu…

 

 

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