Cemitério dos vivos

A dizer cemitério prefiro campo santo. Não sei se os leitores desfrutam a mesma opinião.

Cemitério enseja coisa morta. Corpos apodrecendo, mau cheiro, lágrimas de saudade e comiseração. Já campo santificado vai mais além. Logradouro abençoado pelos anjos, por um Deus no qual acredito, que não mora apenas na igreja. Templo por onde passo pelas manhãs bem cedo. Ali fico minutos a sós com minhas contemplações. Pedindo por todos os necessitados, oro por minha família, pelos filhos, pela esposa, pelo netinho até no momento unzinho. Logo espero outros mais me permitam ficar junto a eles, rejuvenescendo, indo ao revés do que a idade dita. Que hoje tenho sessenta e sete anos, logo, em dezembro sete, mais um ano me espera. De fato. Agora, quando fico a pajear o Theo, depois de correr quase dez quilômetros na esteira, de nadar curtas distâncias quando a temperatura inspira, nos míseros trinta minutos a correr atrás dele quase vou a nocaute. E me deixo no chão do tapete da sala onde ele mora, exausto, sôfrego, arfante de cansaço e prazer. E como é bom ser avô!

Voltando ao cemitério, jazigo dos mortos, sepultos, por ali passo dias tantos. Sobre o campo santo já escrevi tantas crônicas. Um túmulo em especial me atrai. Ali repousam meus pais e aparentados. No derradeiro finados ali deixei um vaso de flores aos mortos. Era um vaso de crisântemo que dele, no calor deste domingo, nada mais restou. Caso passar por ali neste dia lindo só restará o tampo de mármore cinzento. As placas comemorativas com inscrições de minha autoria. Dois vasos da mesma pedra do tampo da tumba. Uma singela cruz do mesmo granito. Saudades, lágrimas derramadas, uma lacuna enorme a me corroer por dentro. Nada, nada, mais nada.

Há coisa de dez anos vivo noutro bairro. Daqui, da janela do sétimo andar do meu consultório quase vejo a outra casa mais intimamente ligada ao meu passado. Hoje nela mora outra família. Que um dia vai mudar de lugar. E a casa enorme, por mim edificada, vai estar vazia. Entregue às lembranças díspares entre alegria e tristeza de quando ali moramos. Minha esposa, meus dois filhos, e alguns cães que, infelizmente, não estão entre nós. Eles se tornaram cães anjos.

Neste novo bairro onde vivo, hoje apenas minha Rosa e eu, é um local para mim equivalente ao campo santo.

Cheio de verde. De pássaros que voam livres. De cães que perambulam pelas mãos de seus donos. Condomínio, para onde, ao para lá me mudar, numa casa moderna, maior que nossas necessidades pedem, por passar a gostar de correr, de nadar, de pedalar, os meninos do condomínio passaram a me chamar de “poeta atleta”. E eu os respondia com sonoros “eta eta”.

Já fazem mais de dez anos que mudei de bairro. Daqui posso ver a casa onde morei. Não posso, de onde estou, identificar de onde vim. Um monte de casas e edifícios impedem-me a visão.

Hoje, bem cedo, saí de casa em ótima companhia. Não iria correr. Como de outras vezes. Minha esposa Rosa foi caminhando junto. Fomos à padaria costumeira.

Uma vez de volta, na pracinha hoje remodelada, está linda, nos demos de encontro com uma senhora assaz simpática.

Ela vive solitária em sua casa. Rodeada de saudades dos filhos ausentes. Talvez, por influência minha, ela tem deixado seu carro na garage e anda pelas próprias pernas. Menos que podem as minhas.

Confesso que a solidão não tem feito bem a sua pessoa. Ela sente a falta de mais familiares ao derredor.

Sempre que subo, quase no meio do dia ela desce. Ela se alimenta fora. Creio que come pouco. Suas feições inspiram isso.

Hoje, quase no condomínio, numa afável conversa, a senhora, de silhueta fina, me disse algo que me fez pensar na morte. Espero que a minha ainda tarde bastante.

Foi dela que ouvi esta exclamação: “aqui se parece a um cemitério dos vivos”.

Uma vez depois, ao pensar no dito, como eu aprecio viver naquele condomínio recheado de coisas boas. Adoro seu silêncio. A azáfama das maritacas. O canto dos assanhaços chupando pitangas maduras. As florzinhas das Murtas despencadas do alto. Que atapetam o chão duro do asfalto em certas épocas do ano. Amo tudo que ali encontrei. Como talvez ame o campo santo, onde ficam pessoas que um dia foram felizes, como eu tento ser. Talvez sejam no lugar onde estão.

Caso o condomínio Jardim das Palmeiras seja tal e qual um cemitério dos vivos, entre esses vivos e bem vivos me incluo.

 

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