Amo as madrugadas

Ao acordar bem cedo é preciso acender a luz. Lá fora se mostra o cinza. O negro, mal se vê o verde das árvores. O escuro do asfalto. O canto dos pássaros ainda não despertou. Eu apenas e outros madrugadores de pé estamos.

A primeira providência do dia é ir ao banheiro. O vaso sanitário é o primeiro trono que porventura me recebeu. Não se trata de um trono famoso. Naquela poltrona altaneira. Assento feito em veludo vermelho. Com requintes de puro ouro a brilhar nos braços altos da cadeira especial.

Embora não seja de ascendência nobre, não sou duque, príncipe não serei, nem ao menos candidato a outro assento especial. Contento-me mesmo com este trono ao qual compareço em horas tempranas. Ali me assento, penso com meus intestinos. Exonero-me dos excrementos. Sem nenhum lamento. E só depois a pia me recebe. Lavo o rosto mal dormido. Escovo os dentes com furor insano. E só depois visto a roupa do dia. Durmo sem nenhum adereço a cobrir minha pele. Seja em dias frios ou se faz calor como tem feito nestes dias de verão a pino.

Ao olhar da janela do meu quarto cumprimento a seringueira esfregando as folhas de sono. Ali nenhum pássaro ainda se faz notar.

Caso tenha chovido, ou se ainda caem pingos do alto, já de roupa trocada saio à rua. Sempre caminhando, ou rápido, no caso de caírem gotas de orvalho em forma de chuva mansa, ou lentamente observando as madrugadas, sejam quentes ou ainda molhadas pelo frescume das horas tempranas.

Amo as manhãs bem cedo por distintos motivos.

As ruas ainda estão entregues a poucos passantes. A escuridão apenas é quebrada pelos faróis dos carros. Hoje lancei mão de um deles. Pois tenho, depois das consultas da manhã, de ir à roça dos meus encantos, levar mudas de plantas a serem ali inseridas à terra, árvores e pequenos arbustos. Tenho de aproveitar as derradeiras chuvas para que as mudas se transformem em verdes grandes. Com sua sombra proteger-nos do calor do sol do meio dia.

Adoro as madrugadas, pois a inspiração que me atormenta positivamente se explica sem alarde em meus textos tantos. Um a cada dia. Sobejamente pelas manhãs. A partir das oito o escritor se transmuta no médico que ainda sou. Tenho de deixar os escritos para as outras madrugadas. Tomara as tenha tantas quantas as que ainda me são reservadas por um ser superior. Que não se deixa ver mas sei que Ele está ali. Por entre as nuvens que não se mostram no dia de hoje. Nem ao menos o azul do céu que deve se manifestar mais a tarde.

Amo a exaustão o clarume luscofuscozento que bem cedo não se deixa ver. Agora o céu se mostra da cor cinzenta. Vai chover mais? Tomara.

Amo as madrugadas, sejam elas claras, escuras, vazias de pessoas. Amo-as de qualquer maneira. É nelas que minha inspiração se faz notar em notas altas. Aqui, na sala ampla onde escrevo, da janela do meu sétimo andar se deixam ver as montanhas da serra da Bocaina. A névoa densa que de pouco perde a força impede de ver o sopé da serra. Logo logo tomara as possa imaginar molhadas, o verde revivido, as vacas pastejando alegres, para depois irem ao curral encher os baldes com seu sumo branco e nutritivo.

Adoro as horas tempranas. É nelas que minhas crônicas nascem uma a uma. Dias há em que nascem duas. Antes que os pacientes cheguem.

Gosto tanto das horas antes que o sol desponte, que, caso pudesse eleger qual hora melhor seria, com certeza iria ser a hora na qual acordei no dia de hoje. Antes das cinco. Bem antes.

Amo tanto as madrugadas, que, se pudesse, e meu gosto prevalecesse, faria dos dias apenas horas madrugadoiras. Deixaria as horas tardias dormirem para sempre. Não quero em definitivo que elas morram. E sim que as manhãs tempranas ficassem eternizadas não apenas em minhas lembranças, bem como na eternidade da minha idade provecta.

Adoro acordar bem cedo. Mesmo que a noite não seja a companheira ideal para o descanso costumeiro.

Se pudesse, e minha vontade prevalecesse, transformaria as noites em madrugadas inteiras. O dia seria tão somente dias cedos. As noites não existiriam. As madrugadas sim. Elas ocupariam todo o tempo do dia. E prevaleceriam não apenas em mim. Assim como em todas as pessoas que pelas ruas correm. Apressadas, em busca dos seus ganha pãos. Nas azáfama do cotidiano. Enfim.

Já que não posso fazer minha a vontade dos outros, já que amo as madrugadas muito mais que a volta do dia, por favor, respeitem-me o desidério. Como eu respeito o de vocês.

Agora são mais de sete da manhã. Pena que a madrugada já virou dia. Pelo menos pra mim.

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