O dia em que a gente perder a fome de viver

Joaquim sempre acordava cedo.

Tomava o café por ele mesmo preparado. Vivia só. Numa casa alugada. Apesar de ter sido capaz de ter a sua.

Era metalúrgico. Amava aquele trabalho pesado, mãos sujas de graxa, tinha por aquele torno o maior carinho.

Era considerado operário modelo. Desde os vinte anos foi admitido naquela fábrica onde mais de mil trabalhadores batiam o ponto. Galgou pouco a pouco todas as funções possíveis naquela metalúrgica de onde saíam produtos essenciais ao fabrico de carros. Antes dos trinta foi elevado ao cargo de gerente. Era admirado não apenas por sua competência profissional bem como pela responsabilidade inerente ao cargo.

Joaquim, depois de longos anos acordando cedo, tomando o ônibus sempre atrasado, ou o metrô superlotado, não se lembra de ter faltado ao serviço um dia sequer. Era em verdade descuidado com a própria saúde. Até aquela idade nunca havia feito um exame. A visita ao médico apenas se recordava quando sua saudosa mãe o levou ao pediatra. Depois jamais retornou.

Por excesso de trabalho não tinha tempo para o lazer. Namoridos os teve. Mas acabou não se casando. Ficou noivo duas vezes. Mas desistiu de se acabestrar por apreciar a liberdade que sempre teve. Amava passar os finais de semana num parque. Olhando no lago escuro os patos nadarem livres e soltos. Sem nada a importuná-los.

Passaram-se quarenta anos de carteira assinada. Joaquim não se considerava idoso. Ainda operoso, considerava o ócio o início do fim. Era esta a frase que considerava acima de tudo e uma lição de vida. A qual cultuava como se fosse uma bíblia.

Aos sessenta, ainda saudável, na mesma função, Joaquim pensava ser imune às doenças. Foi quando, pela primeira vez, notou uma alteração em seus hábitos urinários.

A urina não saía de todo. E como doía a sua uretra que um dia entupiu. Foi levado ao hospital pelos amigos. Ali lhe foi passada uma sonda com enormes dificuldades. Uma vez esvaziada a bexiga que sensação boa sentiu o aliviado Joaquim.

Mas, tão logo o incidente passou, deixou o hospital sem a sonda, novamente voltou mais forte ainda a sensação de não poder urinar.

Foi feito o diagnóstico de aumento da próstata. Felizmente de natureza benigna.

Joaquim passou dez longos dias aguardando a cirurgia. Foi a primeira vez que se afastou do emprego.

A operação foi realizada por um urologista competente. Felizmente ele tinha plano de saúde. Fosse pelo SUS amargaria uma longa espera. E não se sabe até hoje quando a operação seria efetuada.

Joaquim voltou à fábrica cheio de vontade de trabalhar. Revitalizado por aquela operação que o permitiu urinar como dantes.

Então contava com quase setenta anos. Quarenta de serviço, quantia suficiente para se aposentar definitivamente.

Aconselhado pelo RH, pelos colegas de trabalho, por que não requerer ao combalido INSS o benefício a que tinha direito?

Joaquim contabilizou os anos todos de emprego. Sempre trabalhou duro. Ofício apenas interrompido pelo período que passou no hospital.

Completos os setenta anos, naquele fim de junho, início de inverno, Joaquim decidiu se despedir do torno. Com quem teve, por anos e anos, uma relação de amor e respeito.

Foi numa sexta-feira, junho fechando as cortinas, dia quando Joaquim pela última vez passou pela fábrica. Despediu-se de todos com lágrimas escorrendo pelo canto dos olhos. Nem a festa teve direito. Mas dali saiu satisfeito, pensando na vida nova que levaria.

Passou o final de semana em casa. Na primeira noite não conseguiu abocanhar o sono. Nas seguintes passou em claro.

Na segunda-feira, primeira à aposentadoria, com olheiras profundas espelhadas na face sulcada pelos anos, foi a mesma praça ver os patos nadarem.

Ali permaneceu até a noite chegar. Tinha medo da noite. Por não conseguir dormir passava olhando o teto escuro. Contando as estrelas que não havia.

No dia seguinte repetiu a visita. Estava frio até o nascimento do sol. Que olhava para o desanimado Joaquim com olhares de falso brilho.

Dois meses se passaram. Joaquim mais e mais se arrependeu de ter aposentado.

Ele ainda tinha muito para dar. O que eram setenta anos para quem passou a vida toda no trabalho.

“Ócio é o começo do fim”. Assim pensava o pesaroso Joaquim.

De novo na praça, assentado ao mesmo banco, olhando com olhos vazios os patos nadarem, sem ninguém com quem trocar confidências, como lhe faltava um colo amigo, o infeliz operário, agora afastado do trabalho, novamente lhe passou pelas lembranças os dias felizes quando operava o velho torno.

Não havia sido informado sobre o acontecido ao velho Joaquim.

Um dia me contaram, e eu repasso a vocês, que ele foi encontrado no mesmo banco, da mesma praça, de olhos fechados. A morte para ele havia chegado. Em boa hora filosofou o próprio.

Por este motivo reluto em me aposentar. Posso, a exemplo de Joaquim, perder a fome de viver. Enfim.

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